sexta-feira, dezembro 27, 2013

Dantes. Quando o tempo era tempo. Quando os dias tinham motivos para nascer das pálpebras da noite. Eu sorria. De vez em quando sorria e o mundo era um dia de Sol sem nuvens. Hoje em dia o sorriso é um luxo esquecido e os dias são plúmbeos. Agrestes. Cinzentos. E o tempo já não é bem tempo. É apenas um somatório de horas. Enfileiradas em dias. Agrafados em semanas. Estampadas em meses.

Dantes. Quando o tempo era tempo. Eu era feliz.

Mas parece ter sido noutra vida.

sexta-feira, outubro 25, 2013

Às vezes chego ao fim da noite com palavras, ainda por dizer, dentro do peito. Não as libertei todas. Elas, que são borboletas à procura da liberdade do mundo por fora de mim. Ou do céu em branco de uma folha de papel. Elas, dizia, esvoaçam por dentro de mim. Querem sair. Querem nascer. Querem ferir o espaço vazio e ecoar contra as montanhas dos dias. Eu, por vezes, estou cansado. Ou semi-quebrado. Ou qualquer coisa em mim tem vontade de se desligar. Nessas alturas, é difícil dar-lhes atenção. Tento acalmá-las. Vender-lhes a ilusão de que amanhã é um dia óptimo para nascer. Mas elas, regra geral, não esperam. São irredutíveis. São incansáveis. Lutam contra mim até eu as deixar existir no limiar da noite. Acabo por ceder. Tarde ou cedo, cedo sempre. E fico aqui. Sentado. Quase imóvel. A assistir à dança noctívaga dos dedos. Enquanto elas nascem. Vivas e palpitantes. Meias atarantadas. E desenham no céu de Outubro silhuetas luminosas. Contornos dourados na escuridão. Centelhas de luz na noite que, agora, se deixa adormecer.

domingo, março 24, 2013

Domingo à tarde

A vida é feita de momentos. Tantos momentos. Tantos e tão decisivos momentos. Às vezes, mais vale não pensar nisso. É melhor pensar nela como a folha em branco. Como a tábua rasa. Como um mundo infinito de possibilidades. E esquecer as dúvidas das escolhas. A angústia do possível arrependimento. A incerteza de sabermos que a vida é, de facto, incerta. Sim. Mais vale não pensar nisso. A vida é feita de momentos. E nós, somos feitos de todos eles. Dos bons e dos maus. Dos louváveis e dos reprováveis. Dos memoráveis e dos que nos doem recordar. Hoje é domingo. E todos os dias são domingos, se quisermos. Ou sextas-feiras. Ou sábados. Todos os dias são nossos. Hoje a vida está aqui. À frente dos olhos. À mão de semear. Pronta a ser colhida, como uma pequena flor na primavera. Por isso, vou-me. A vida está aqui. Mas, lá fora, está-se melhor.

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Pára. Escuta. Olha.

Quando alguém te perguntar muitas vezes: "Estás bem?". Quando te sentires meio enfadado de dizer que sim. Quando te sentires a duvidar se a pessoa que está à tua frente não estará a ficar senil. Ou se é muito distraída. Ou se tem, apenas, mais coisas em que pensar. Pensa melhor. Olha para ela, inclina a cabeça um pouco para a esquerda, como quem a analisa. Aliás. Analisa-a mesmo. Pesa, dentro de ti, as possibilidades. Nesse momento, é possível que digas: "Sim. Estou bem. E tu, estás bem?". Depois, prepara-te para ouvir. Prepara-te para sentir. Prepara-te para abraçar, com palavras, com os braços ou com o olhar, a pessoa à tua frente. Muitas vezes, como diz o outro, "passamos pelas coisas sem as ver, gastos como animais envelhecidos"... e isso... bom... isso é um erro. Isso não é, bem... bem... viver.

sexta-feira, janeiro 18, 2013

O dia chega ao fim

O dia chega ao fim. Dizem que sim. Que o dia chega ao fim. Minto. Eu sei que o dia chega ao fim. Eu sei. Eu já vi os dias morrerem na noite. E as noites renascerem, estremunhadas, na madrugada. Eu já vi dias chegarem ao fim. E sei que, agora, de uma dimensão puramente temporal, puramente objectiva, o dia chegou. De facto. Ao fim. Eu sei disso. Mas um dia nunca chega verdadeiramente ao fim enquanto estivermos presos nele. Como naquele filme do dia sempre igual. Sempre repetido. Sempre as mesmas horas no relógio da mesinha de cabeceira, pela manhã. Sempre as mesmas coisas a acontecerem nos mesmos momentos, com as mesmas pessoas, nos mesmos cenários, sob o mesmo céu. Como nesse filme, assim persistimos nós num dia que nos prende pelo pescoço e não nos deixa repousar.

Não é insónia. Não é ansiedade. Não é tristeza. Não é, sequer, capricho ou vocação noctívaga. É, tão só, o dia que não chega ao fim. O dia que continua preso em mim. E eu nele. Agarrado a mim como uma substância viscosa. Como um pega-monstros gigantesco e verde. O dia não se desprende de mim. Não me liberta (serei eu que não o liberto?). Não me deixa ir dormir (serei eu que não o deixo ir dormir?). O dia diz-me ao ouvido, de uma forma suave mas insistente: "Não podes ir. Ainda não acabei. Ainda não acabei. Eu sou melhor que isto. Eu tenho uma supresa para ti. Vais gostar. Espera. Não vás. Espera por mim. Quero dizer-te muita coisa. Hei-de ser um dia memorável. Inesquecível. Inolvidável. Memorável. E tudo o mais que termine em ável na tua memória."

O dia diz-me essas palavras. Ou outras semelhantes. Sempre com o mesmo intuito. Fazer-me crer que, na verdade, algo ainda está por acontecer. Mas é mentira. Hoje não acontece mais nada. Hoje acabou. O dia chegou ao fim. Eu é que permaneço neste limbo, neste limiar absurdo entre o ontem e o amanhã, que não chega a ser hoje. Na verdade, creio que sou eu que não deixo o dia ir dormir em paz. Repousar a cabeça na almofada. Cobrir-se com os lençóis e os cobertores. E ler um livro. Poucas páginas. Apenas as suficientes até o sono chegar. Até a noite deste dia chegar. E com ela, os sonhos de dias melhores. Mais cheios. Sem fim.

segunda-feira, outubro 08, 2012

Só eu

Aqui.
De mãos abertas encostadas ao vazio de tudo.
De braços apertados em redor da ausência.

Aqui.
Estou eu.
Só eu.

E nada mais.

segunda-feira, outubro 01, 2012

Diasertos

Agora os dias são apenas dias. Dantes eram qualquer coisa de mais especial. Havia neles um entusiasmo qualquer. Fosse ele estival ou juvenil. Ou de qualquer outro tipo, não sei. Neles habitava aquela esperança incerta e sonolenta pela manhã, que fazia com que sair da cama não custasse tanto. Com que fosse aceitável e necessário.

Nesse tempo cada despertar estava inconscientemente ligado a um qualquer objectivo. A um qualquer fim. A um qualquer desejo ou a uma qualquer vontade. A qualquer coisa que fazia com que valesse a pena saber que aquele dia era o dia X e que o dia seguinte seria o dia Y. E por aí fora. E isso ajudava a manter uma noção do tempo. Os dias da semana tinham nome e estavam radicalmente separados do Sábado e do Domingo. E havia meses, também.

No fundo, residia em cada dia a vaga sensação de que, antes que ele acabasse, poderia haver uma recompensa. A convicção de que havia uma guloseima por descobrir (e desembrulhar. E lambuzar.) entre os instantes do dia. De que bastava saber procurá-la que ela surgiria, algures, à nossa mercê. E que isso, de alguma forma, daria significado e sentido ao dia. Aliás, era esta motivação que enchia os dias de algo mais do que horas e minutos. Era esta motivação. E não o facto de se concretizar ou não.



Agora (está bom de ver) os dias são apenas dias. Amorfos e indistintos entre si. Anónimos. Deixou de ser essencial nomeá-los, separá-los, ordená-los. E, por isso, também já não há fins-de-semana nem meses.

Agora. Que já não há objectivos. Nem vontades. Nem guloseimas que desejar. Os dias são apenas dias. Um longo e aborrecido deserto de segundos, minutos e horas. Pelo qual temos de vaguear.

Sedentos, sem destino e sem oásis por encontrar.

sexta-feira, setembro 28, 2012

Tríptico

Sinto-me um invólucro.
Ou uma casca.
Ou um casulo vazio.

quinta-feira, setembro 20, 2012

Um dia.

Que raio é, afinal, um dia? Um dia, apenas. Um dia não é mais do que uma onda num oceano presumível de dias. Onda que desagua em nós. Ou na qual desaguamos. No nosso corpo persiste a lembrança ténue e vaga de todas as ondas. De todos os dias. Em que já nos banhámos. Que já vivemos. E nada mais. Apenas uma ténue e fugaz lembrança de algo que já foi. De algo a que chamamos, talvez inocentemente, passado. A questão é que cada novo dia. Cada nova onda. É vivo. É real. Traz a embriaguez egoísta do momento. Perante ele todas as sensações de outros dias. As ténues e fugazes sensações. Parecem desaparecer. Desvanecem-se, esbatidas, contra o poderio tremendo do presente. Naquele momento. Neste momento. Nada mais interessa. Nada mais importa. Nada mais existe. Fora deste dia, tudo é passado. Tudo são lembranças, que podem ou não ter acontecido. No fundo, quem nos garante que o ontem existiu mesmo? Que não é apenas uma ilusão? Mas o hoje não! O presente não! Ele está aqui, agora! Ele está aqui à mão de semear! Oferece-se perante nós e desenrola-se perante o nosso olhar. Nele podemos intervir. Nele podemos sorrir e chorar. Amar e odiar. Nele podemos tudo. Só neste dia presente podemos tudo. Tudo o resto é história. Lenda. Talvez contenha um fundo de verdade, mas nada mais que isso. Mas hoje não. Hoje estamos aqui. Tu e eu. Nós todos. Agarrados na vertigem de montanha-russa do tempo. Estamos na crista da onda, eu e tu. Podemos surfá-la se nos apetecer. Ou outra coisa qualquer, na verdade. Bebê-la a golos sôfregos e sedentos. Saciar a sede de tudo enquanto a onda nos rebenta na cara. Ou fechar os olhos e escutar, apenas, o ruído da rebentação do dia. Contra as rochas. Contra a areia. Contra os corpos.

Mas no fim de tudo. Depois da embriaguez do momento omnipotente passar. Depois da onda cessar e esmorecer em nós. Agora, que o dia termina e um novo se adivinha ao fundo, no horizonte. Intrigante e cheio de si. Prometedor e desejado. O que é, afinal, um dia? Senão uns suaves salpicos de lembranças (Ténues. Fugazes) que sentimos impregnar-se em nós. Mesclar-se com o sal de dias passados. Dissolver-se em algo que pode ter acontecido, talvez. Mas que não podemos jurar a pés juntos que tenha mesmo sido assim. Que tenha mesmo sido real.

A verdade é que um dia não é nada, depois de terminado. Nada.
Mas enquanto dura. Enquanto nos pertence e lhe pertencemos. É tudo. Tudo o que temos.

sexta-feira, setembro 07, 2012

Esqueci-me

Não sei se ainda tenho as palavras cá dentro. Ou qualquer coisa, na verdade. Ultimamente tenho de me esforçar bastante para conseguir o que, dantes, parecia tão simples. Sinto-me vazio. Nem é bem vazio. É desconexo. Desligado. Como se me tivessem tirado uma pecinha qualquer. Minúscula mas, aparentemente, não insignificante. Crucial.

As ideias e as frases saem-me aos repelões. Forçadas. Insípidas. Deslavadas e descoloridas. Sem força. Sem emoção. E ideias e frases sem emoção são apenas palavras. Letras. Unidas umas às outras apenas porque sim. Como aqueles familiares mais afastados (ou de quem fomos ficando afastados)a quem estamos ligados só porque sim. E com quem nos encontramos no Natal. E num ou noutro aniversário.

É preciso algo mais. Letras postas em fila indiana, apenas, é pouco. Muito pouco. Falta o magnetismo. É preciso que as palavras se procurem. Se desejem. Se necessitem umas às outras. É preciso que sejam perfeitas. Que sejam únicas. Que, postas lado a lado, ninguém as consiga sequer imaginar separadas. É preciso que sejam essenciais. É preciso que, umas sem as outras, sejam nada. E que juntas sejam tudo.

Mas não sei. Não tenho força. Creio que nunca mais vou conseguir. E, por isso, resta-me ir enfileirando letras. Palavras. Frases. Na parva esperança que um dia elas ganhem - Quem sabe? - vontade própria. E se busquem umas às outras pelo texto fora. Que gritem bem alto os nomes das palavras que lhes faltam.

Até eu as ouvir. Até eu me lembrar.

quinta-feira, setembro 06, 2012

Óculos de sol

Não sei. Nem quero saber. O olhar longe, perdido entre o horizonte (Barcos. Tons de azul. Calor). Nem quero olhar. Nem quero ver-te aí. Ao meu lado. Inteirinha saída da minha imaginação. Sem tirar nem pôr. Criada não à minha imagem. Mas à imagem das imagens dentro de mim. Toda tu ainda coberta do sangue e dos restos da placenta dos meus pensamentos. Dos meus desejos. Dos meus sonhos.

Mesmo assim, não quero olhar. Por mim desaparecias. Agora. Agorinha. Voltavas para dentro de mim. Para dentro do sótão escuro e reconfortante que trago comigo. Nem quero saber se estás aí ou não. É inútil. Inútil como uma tarde de fim de Verão à beira-mar. Se me concentrar, consigo. Se me concentrar desvaneces-te no ar. Eu sei que sim. Sei que não existes. Sei que. No fundo. Tudo não passa de um delírio causado pelo calor e pelo Sol a mais (a minha avó e a minha mãe a dizerem-me que "na moleirinha"). És impossível. Irreal como uma miragem no deserto.

Fecho os olhos com força. Hei-de conseguir. A claridade alaranjada do Sol a trespassar-me as pálpebras. A lembrar-me que não sou cego.

( Em pequeno a ideia de que se fechasse os olhos ficava como um cego. "Via" como um cego. O choque quando um dia percebi que a luz entra. A luz passa. A luz atravessa as pálpebras e chega à retina. Mesmo de olhos fechados. Mesmo usando muita força.)

(...)

Não consigo. Nem precisei de olhar de soslaio para o lado para saber que continuas aqui. Nem precisei de abrir os olhos. Continuo a sentir-te. Através dos olhos fechados, a tua luz chega até mim. E é forte. Intensa. Ironicamente, quase me cega.

De repente, dá-me vontade de sorrir. Sorrio. Ainda de olhos fechados. Imagino o teu sorriso e o teu olhar. Viro-me para o lado e olho para ti. À espera de os ver desenhados no teu rosto tal como se o desenhador tivesse sido eu. Ohhhh...

Mas são diferentes. És diferente. Nítida. Possível. Real.

quarta-feira, setembro 05, 2012

V

Do alto dos meus olhos e dos meus dias, o teu corpo era um abismo sem chão. Um vazio inescrutável que me incitava a saltar. Um vórtice para onde a vertigem me empurrava. Uma viagem sem volta. Um voo de ave sem asas.

sexta-feira, agosto 31, 2012

O começo

Enquanto a tarde caía sobre nós, eu perdi-me no teu olhar. Na luz do Sol que se esticava, por entre as folhagens, até ele. Até ti. Todo o meu corpo, todo o meu ser, todo eu era um olhar virado para ti. Mais que um olhar. Todo eu era um bisturi. Um holofote apagado e sedento. Um feixe de atenção concentrado em ti. Na textura e no revelo do teu olhar beijado pelo Sol. Nas suaves cambiantes âmbar-mel-avelã. Todo eu preso no jogo de luz e sombra. A adivinhar qualquer coisa dentro dos olhos. A sentir uma qualquer vibração por trás da pupila. A tentar decifrar uma mensagem (Semi-ilegível. Semi-reprimida. Semi-desejada) que os teus olhos, sem quereres (Querias?), reflectiam.

Não sei quanto tempo passou, fora do meu devaneio. Sei que, aos poucos. Subtilmente. Senti-me emergir das profundezas do teu olhar. Ouvi, ao longe, o fluxo cristalino e refrescante da nossa conversa, das nossas palavras. E segui-o. Segui-as. Até me conseguir escapar das paisagens sem nome dentro de ti.

Foi nessa altura. Enquanto apreciava a brisa do entardecer. E as cores do pôr-do-Sol começavam a pintar o mundo em nossa volta. Que (o que me havia de acontecer) fiquei enredado na teia do teu sorriso...

sábado, maio 12, 2012

Um dia conheci a poesia

Um dia conheci a poesia. Conheci uma pessoa que era a poesia. Uma pessoa apenas. Em toda a vida. Talvez haja, para cada um de nós, uma poesia escondida por entre as folhas dos dias. Uma melodia secreta escondida por entre as partituras dos tempos. Não sei. Talvez eu seja surdo. Cego. Talvez seja, para além de tudo isso, injusto. Ingrato. Mal-agradecido. Ou apenas esquecido. Não sei...

Mas hoje. Agora. Aqui. (2012, meu Deus). Penso que conheci. Um dia. Uma pessoa que era a poesia. Na altura, contudo, eu era outro eu. Hoje essa pessoa não seria, para mim, a poesia. Creio, aliás, que para mim já não há poesia. Mas naquela altura. Naquele momento da vida. Eu e esse alguém. Juntos. Éramos poesia. Fomos poesia. Essa pessoa tocou-me num dentro diferente. Esteve num lugar qualquer em mim que nunca ninguém mais conseguiu visitar.

Pode ser que esse lugar já não exista. Acho que não existe. Mas existiu e só uma pessoa lá esteve.

E era isso que eu queria dizer.

quarta-feira, março 21, 2012

Expectante...

No fim do dia, falta qualquer coisa. Fica um buraco por preencher. Não sei onde, na alma. No fim do dia, há qualquer coisa que me escapa. Agarro-me ao dia como a uma tábua de salvação. Mas não resulta. Não há, ao fundo, um barco que me resgate ou ilha onde ir desaguar. Agarro-me ao dia com a esperança de que algo aconteça. Um algo impreciso e inconcreto. Um D. Sebastião qualquer, a esta hora da noite.


O relógio e o cansaço teimam em dizer-me que o dia findou e é hora de ir dormir.

[A música do Vitinho a começar a tocar na cabeça.]

Mas não. Dentro de mim há qualquer coisa que espera. Há qualquer coisa que aguarda. Como alguém que tivesse a missão de esperar por um companheiro talvez perdido em longes por desbravar, talvez de regresso, talvez morto pelo caminho. Dentro de mim há qualquer coisa que espera.

Mas no fim do dia. No fim da noite. É sempre só o cansaço que me bate no ombro e me guia até à cama.

terça-feira, março 20, 2012

Suspiro

Do fundo do silêncio empedernido. Do fundo das memórias e dos dias. Do fundo da vida. Do fundo de mim. Teima, por vezes, em escapar um suspiro.

Mas nada mais.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O vértice de tudo...

Estou no vértice de tudo. O próximo passo (seja para que direcção for) será decisivo. É claro que sei que todos os passos são decisivos. Que até a mais ínfima das escolhas leva a destinos díspares. Mas. Mesmo assim. Este é um momento importante. Quase irrepetível. Um momento mais importante do que outros (talvez) porque é auto-consciente. Sente a sua própria importância no trajecto de escolhas que é a vida. Olha para si próprio com reverência. E por isso engrandece-se. Como a nossa própria sombra ao pôr-do-Sol. Como uma sombra tão grande que se espraia por todos os instantes ínfimos dos dias.

Neste momento crucial. De ante-câmara da vida. Sinto-me quase omnipotente. Eu posso ser. Tanta coisa. Ser eu em tantos locais distintos. Escrever a minha história de tantas maneiras possíveis. Eu sei que é isto a vida. A página em branco sublime onde nos podemos escrever (ou pintar ou rabiscar) da forma que quisermos. Eu sei. Eu passo muito tempo a pensar nas escolhas. Nos prós e contras. Nos sins e nãos. Mesmo das coisas mais ridículas. E é por isso que sei que estou no vértice. É por isso que sinto o poder da escolha na palma das mãos. Sinto-o como uma chama que me ardesse dos dedos sem mos consumir.

O que me inquieta. No entanto. É a escuridão em que tenho de dar o próximo passo. A incapacidade de avaliar. De julgar. De pesar. De imaginar até. Tudo o que virá. E por isso sinto-me cego. Ou vendado como as senhoras dos anúncios para escolher o melhor produto alimentar. Mas. Neste caso. Também sem gosto e olfacto.

Estou no vértice de tudo. Se pudesse colocar um marcador de livro neste dia. Nesta semana. Colocá-lo-ia. Como uma salvaguarda. Se tudo corresse mal. Se me escrevesse torto por linhas aparentemente direitas. Se me rabiscasse vezes sem conta e as páginas ficassem um interminável esboço do que poderiam vir a ser. Nesse caso poderia voltar aqui e começar uma nova história...

Mas sim. Eu sei. A vida não é nada disto. Ou talvez até seja, na maioria das pequenas decisões que se nos atravessam à frente. Mas hoje. Neste preciso instante. No vértice de tudo. À sombra omnipresente de um momento adamastor. Parece que estou prestes a escrever a caneta numa folha em branco. Só com uma borracha verde por perto...

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Frio...

Outra vez. Não sei porquê. O frio. A sensação de que nada vale (realmente) a pena. Que me importa se a frase é feita ou por fazer. A verdade (agora) é o frio. E perante ele tudo parece cessar.

...
...
...

Brrr.

domingo, janeiro 17, 2010

Vazio

Cheguei ao fim do dia triste. Sem saber imediatamente porquê. Só depois me recordei que hoje foi um dia sem te ver. Foi um dia sem ti.

Toda esta tristeza seca e desamparada tem origem na saudade. Num desejo de te encontrar nalguma esquina do quarto. Das escadas. Da cozinha. Por isso este vaguear errático pela casa. Esta sensação de que o dia não chegou ao fim. De que há ainda algo de muito bom por acontecer.

Infelizmente hoje foi um dia sem ti. E não há nada de bom por acontecer.


[13/07/2006]

quinta-feira, janeiro 14, 2010

(Des)necessidades...

Não sei dos cadernos. Aliás. Não sei sequer se ainda preciso de saber dos cadernos. Na verdade talvez já nem saiba escrever. Nem falo de o fazer bem ou mal. Falo apenas do próprio acto de escrever. Ultimamente nada me chama para uma folha de papel vazia. Branca e vazia. Nada me chama para um écrã vazio. Vazio e branco. Como o tempo. O tempo que passa e deixa tudo na mesma. Ou melhor. Que passa e não deixa tudo na mesma. Mas há alguma diferença entre estas duas frases? Talvez bastasse dizer: O tempo que passa. Ponto final. Tudo o resto é redundante.

terça-feira, setembro 01, 2009

Alta definição...

Não sei. Estou cansado. Passa tudo demasiado depressa. Ou sou eu que não consigo acompanhar o ritmo de tudo. Que interessa, afinal? Vai tudo dar ao mesmo. Neste caso, vai tudo dar a esta sensação de vertigem dos dias. A este mundo desfocado que me entra pelos olhos cansados. A este pano de fundo de náusea, que me serve de cenário a todos os instantes.

Nem vontade disto, nem de outra coisa. Nem desejo, nem repulsa. Nem esperanças, nem desilusões. Tudo está bem. Tudo está bem, claro. Se alguém te encontrar na rua, sorri. Se te perguntarem "como vais?", responde que está tudo bem. Nem penses em dizer "vou andando". Não vale a pena incertezas. Na realidade, quem é que quer saber? Quem é que, na verdade, se importa? Sorri. Não te esqueças. É fácil. Basta repuxar um pouco os cantos dos lábios e estás safo. Sim, está tudo bem. E porque é que não havia de estar? Não, mais vale dizeres que está tudo bem. Assim escusas de tentar explicar. Escusas de tentar pôr por palavras as tuas ideias orfãs. Desconexas. A tua visão turva dos dias. É claro que está tudo bem.

Mas não exageres. Isso passa. Tu sabes que sim. Um dia destes dormes melhor e acordas dentro de ti. E vais andar ao mesmo ritmo do que o resto do mundo. Vais ouvir os mesmos tambores do que os teus irmãos. E ver tudo com a nitidez própria da era HD. Que diabo, até destoas. Como uma televisão pequenina, a preto e branco, perdida num mundo de iphones e playstations.

É isso. Um dia destes acordas e em vez de olhos tens uns plasmas lindos! E a cor toda do mundo vai entrar-te pelos pixéis adentro! Em formato RGB, claro. Nessa altura já nada vai passar depressa demais. Se começar a acelerar, fazes uma pausa e colocas em câmara lenta. Bem podes dizer adeus às vertigens e ao cansaço.

Até lá. Sorri. Está tudo bem.

terça-feira, julho 14, 2009

Solavanco

Agarrei na caneta como numa lança. Com vontade de ferir. De me ferir. Quis rasgar o papel com palavras fortes e indomáveis. Selvagens. Sem trela. Poderosas e livres. Mas. Entretanto. Algo se desligou por dentro de mim. Como um interruptor estragado. Ou uma lâmpada velha que se funde.

E agora. Nem a caneta é uma lança nem eu um guerreiro louco. Fiquei agarrado à lembrança vaga de um ímpeto criativo. Que se esfumou. Que se esvaiu. Pela ponta desta caneta.



[Um dia igual a muitos]

sexta-feira, julho 10, 2009

Areias do tempo...

Será que ainda te lembras de ontem? Dos medos que se encontravam à espreita em cada esquina? Da aventura que era cada passo do caminho? Será que ainda te lembras de como chegámos até aqui? Eu não sei se consigo lembrar-me de tudo. Mas há coisas de que não me esqueci. Subsistem em mim, ainda agora, os restos de todas as sensações que tive até chegar a este dia. São impressões. Leves nuances. Gradações. Que, unidas, perfazem este eu, que agora escreve estas linhas.

Será que tudo não passa de um sonho? Há imagens que me atravessam o cérebro de forma desconexa. Pequenos fragmentos que não consigo conciliar. Aos quais não consigo dar sentido. Não sei de onde vêm. Talvez tu te recordes! Diz-me, são verdade? Ou invenções de uma noite mais negra que as outras?

Quem me dera saber distinguir sempre o certo do errado, até mesmo nos sonhos. Até mesmo nas memórias. Preciso que me lembres como se faz. Sei que havia um truque - Tinha de haver! Havia? - Um truque para saber sempre o que fazer. Sei que havia. Senão como é que tu conseguias? Lembro-me de como, para ti, era tudo tão claro. Para mim sempre foi como ver um espectáculo de magia. Olhava-te maravilhado. Com a admiração incrédula de um miúdo no circo.

Agora, não sei nada. Esqueci-me de muita coisa. De quase tudo. Do pouco que sei lembrar, muito é sonho e confusão. Preciso que me digas se te lembras. Se ainda te lembras de ontem.

E que mo contes agora. Antes que tudo termine. Antes que tudo seja passado.



[10/03/2009. Confuso, mas já tinha saudades...]

quinta-feira, março 26, 2009

A queda

Não sei se acredito no que me voltou a acontecer. Outra vez a desilusão à minha porta. Tomei medidas para que não se repetisse. De há tempos para cá almofadei a minha vida. Limei-lhe as arestas todas. Tentei balizar as minhas expectativas. Passei a ter cuidado com os sonhos. A evitar qualquer emoção feliz por antecipação. É verdade. Passei a percorrer a vida pé ante pé. Com pezinhos de lã. Como um bebé a fazer tem-tem. Com toda a cautela para não dar um passo a mais. Um passo maior.

Não valeu de grande coisa. À primeira distracção, caí. Caiu tudo. Uma vez mais.

Já não sei contar as nódoas negras e os arranhões. Nem quero, para falar a verdade. Estou demasiado cansado. Desta vez vou ficar uns tempos aqui em baixo. A tentar perceber os porquês. A tentar perceber os para quês.

Um dia destes talvez acorde com vontade. Com confiança. Com coragem. Para tentar uma vez mais.

Afinal, é sempre assim que tudo recomeça...

quinta-feira, março 19, 2009

Não tenho história

Não tenho história - disse ele. Ela sorriu. O resto da frase ainda a rodopiar na sua mente. Abriu os olhos. À sua frente o azul do mar. Depois do fim da falésia e antes da linha do horizonte o transformar num outro azul. Abriu os braços. Minto. Esticou os braços, até o seu corpo ser tão largo como comprido. Até desenhar uma cruz na falésia. Duas cruzes. A silhueta e a sombra a darem mais dimensões ao silêncio no fim das palavras - Não tenho história.

Em redor o dia acontecia, como um pano à espera de cair sobre o mundo. O vento soprava de todos os lados. Parecia querer entrar por todos os poros da pele. Entranhar-se nela. Fundir-se nessa carne feita cruz à beira do abismo. Ela permanecia quieta. O sorriso ainda no rosto, como um farol por entre o nevoeiro. E pensava.

O vento dava-lhe nos braços a impressão de voar por sobre o azul do mar, em direcção ao pôr-do-sol que se adivinhava. Não tenho história - disse ele. Ela sorriu. E depois sussurrou-lhe baixinho:

Não faz mal. Eu conto-te a minha.

segunda-feira, março 09, 2009

Não são borboletas

Outra vez a impressão má no estômago. Não borboletas. Outra coisa. Não sei explicar. Uma angústia qualquer. As angústias não são todas iguais. Aliás, as angústias não têm nada de comum entre si, para lá do nome. E é uma delas que, neste momento, sinto a fervilhar por dentro.

De uma certa maneira, é uma naúsea. Semelhante à do outro, a Naúsea de todas as coisas existentes. Mas diferente, ainda. Uma naúsea menos existencialista. Apenas uma vontade inexplicável de vomitar algo, que não o que está no estômago. Uma naúsea concreta de vomitar um dentro abstracto.

Talvez seja uma ânsia. Mas inoperante, ineficaz, incapaz de produzir acção. Uma ânsia entorpecida. Adormecida. Uma inquietação subtil e sub-reptícia. Um vulcão qualquer a explodir em nuvens de silêncio e lavas de desilusão.

Talvez seja isto. Não sei bem. Sei que não são borboletas.

quinta-feira, março 05, 2009

As palavras (I)

As palavras fogem de mim como o Diabo, dizem, da cruz. As palavras aparecem-me à frente vestidas de oiro e marfim, esmeraldas e rubis. Para desaparecerem antes de as conseguir perceber. Antes de as conseguir fotografar e de as poder chamar minhas.

As palavras, que já não sei se são doces, se amargas. As palavras onde já não me sei povoar. As palavras ocas como as paredes falsas dos escritórios. As palavras cruéis que me fazem vagabundo dos dias, caminhante num deserto de silêncio. As palavras sozinhas. Solteiras. Sensaboronas. Suspensas num cinzento assustado.

As palavras para onde quero correr de braços abertos. Prados de palavras de todas as cores, cheiros e formas. As palavras a serem a sombra de uma árvore que desejo com a força visceral de ser um Homem. As palavras que são rios a correr na distância do ouvido, pássaros a inundar os campos de felicidade.

As palavras. Sem saber que as palavras não são mais do que letras e sons esquecidos na poeira de um caixão fechado.


[Num dia qualquer do passado...]

quarta-feira, março 04, 2009

Ausência

Sem ti, a solidão fria dos montes aperta-me o coração contra o peito. Como se, a qualquer momento, se fosse esmagar, ou antes, rebentar como um balão vermelho e palpitante. Sem ti custa tudo. Até respirar se me tornou uma tarefa hercúlea. De modo que, agora, não se pode dizer que respiro, mas antes que arquejo pelos dias, como quem se arrasta, nú, sobre um caminho de silvas e tojos. Não percebo a força imensa que o amor carrega, escondida por baixo da capa de liricismo. A força que acende o mundo todo, dando as mais belas cores aos montes, aos rios, às pedras, aos vales, às árvores, ao mar e ao céu. A mesma força que pode, quando o amor acaba - ou se perde, ou se esvai, ou se adia, ou se apaga - pintar, de um só fôlego, todo o Universo de um negro mais fundo que a noite dos tempos, antes de algo ter existido.

O amor é a força mais poderosa que existe. E é tudo o que direi, pois em meu redor, o frio da noite espalhou-se já pelos montes e, cá dentro, o coração bate, pequenino, de encontro à muralha pétrea das costelas.



[2007]

segunda-feira, março 02, 2009

Lembranças...

Às vezes apetece-me olhar para as coisas e sorrir. Sorrir muito com a cara toda. Como quando era criança e o mundo era feito de desenhos animados.
Apetece-me sorrir como se saltitasse pelas margens do Mississipi com o Tom e o Huck. Sorrir como se ouvisse as histórias do Panda Tao-Tao contadas pela mamã Panda. Sorrir como se sentisse as folhas caírem sobre mim, enquanto andava de carroça com a Ana dos Cabelos Ruivos. Sorrir como se entrasse no Jardim Secreto. Sorrir como se tivesse um cavalinho azul e uma amiga com cabelo cor-de-rosa. Sorrir como se fosse um habitante da Floresta Verde.

Às vezes apetece-me olhar para as coisas e sorrir. E com isso... esquecer.


[2007 ou 2008...algures por aí...]

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Reencontro

Caí outra vez na armadilha das gavetas fechadas. E foi a custo que consegui escapar. Mas valeu a pena. Hoje confirmei que lá dentro não há um eu. Há muitos eus. Imensos eus. Espalhados por incontáveis pedacinhos de papel.

(Ainda para mais datados e assinados. Ainda para mais cheios de uma confiança juvenil e incontrolavelmente cheia de si. Arrogante e arrebatadora. Ainda para mais repletos de esperanças e de sonhos. Ou de desilusões e de sombras mais negras que a noite. Nos meus eus não há meio-termo. Ou branco ou negro. Ou vida ou morte. Ou sim ou não. Ou alegria extasiante ou tristeza sepulcral.)

São outros reflexos de mim, diferentes destes. São outros pedaços em que me rasguei. Fragmentos que não lancei ao vento. Talvez num outro dia, quando tudo fizer mais sentido. De qualquer forma, alegria. A sensação de que, por trás de todas as letras de todos os meus eus, reside um fundo igual. Constante e imutável. Como se houvesse uma impressão digital por entre as linhas, uma marca de água nas folhas de papel. Talvez, afinal, eu nunca me tenha perdido de mim.

Isto sim, é uma boa notícia!

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Raio de luz

No outro dia. No comboio. O desespero apoderou-se de mim. Esse mesmo, o verdadeiro Desespero. O desespero que só consigo comparar à ideia que tenho de um buraco negro de onde nada pode escapar. Nem mesmo a luz. Nem mesmo, portanto, qualquer luz interior.

Nessa altura senti-me a desistir. Cheguei a ter vontade de. De uma vez por todas. Desistir completamente. Só não me caíram as lágrimas por vergonha. Estava em pé perto da porta. Não sei porque encostei a testa ao vidro. Talvez porque quisesse sentir na fronte a realidade dura do vidro. Talvez porque quisesse deixar cair uma parte de mim contra algo. Talvez porque quisesse encostar apenas a testa ao vidro. Não sei.

Sei que nessa altura. Enquanto a estação se aproximava rapidamente. Uma menina, com a sua mãe, colocou-se ao meu lado. Virou o rosto para o meu rosto virado para o vazio. Agora já uns milímetros afastado do vidro, mas observando a escuridão total do lado de fora do comboio. Igual à escuridão do lado de dentro de mim.

E disse-me. Juro por Deus! "Boa tarde".

O buraco negro rasgou-se. Virei-me para ela. Ela sorria, ainda com o resto das palavras nos lábios. Respondi-lhe "Boa tarde". Ainda meio surpreso de tudo. Ainda atordoado por ter escapado às garras do Desespero. Ainda incrédulo com a inverosimilidade - ou com a miraculosidade - da vida.

Saí do comboio atrás da menina e da sua mãe. Ultrapassei-as. Segui em frente. Sorri. A luz toda a pulsar dentro de mim. A força daquele sorriso e daquele "Boa tarde" a serem o combustível das minhas pernas, do meu coração. Olhei para trás duas vezes. A menina parada com a mãe a ajeitar-lhe algo no corpo. Um casaco, creio. Não interessa. Paradas. Sem uma palavra. Apenas gestos na distância.

Quando olhei a terceira vez tinham desaparecido. Apenas a imagem daquele raio de luz na escuridão ficará para sempre comigo.

"Boa tarde".

E juro que já era de noite.



[Ontem. Por volta das 19.00. A chegar à Portela]

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Branco

Perguntaram-me, com os olhos muito abertos, se me queixava de alguma coisa. Com os olhos muito abertos, como se as escleróticas assim expostas me explicassem o sentido da pergunta. O que implica que eu percebesse o que são queixas e o que não são queixas. Não sei se consigo. Por isso silêncio. E os meus olhos sem escleróticas a mais. Com a expressão neutra de quem olha através de tudo na procura de uma imagem de felicidade. Como procurando raspar a tinta das coisas, dos dias, das pessoas. Até vislumbrar a armação nua das horas.

As queixas, em si mesmas, são inúteis. Subjectivas como dias agradáveis ou desagradáveis. Ainda que eu me despedaçasse por dentro, que toda a minha alma se corrompesse de caruncho, comida pela cólera do vazio. Ainda que eu estivesse a um passo do abismo. Melhor, ainda que o abismo todo estivesse dentro de mim e não houvesse já qualquer passo a dar. Mesmo nessa situação eu poderia abster-me de me queixar. De levantar a mão na fila da vida (talvez arregalando os olhos até a pupila parecer um berlinde numa nuvem branca) e gritar bem alto: Eu quero fazer uma queixa! Porque sofrer é algo. Considerar um motivo válido para erguer a voz e soprar esta dor nos ouvidos transeuntes é uma coisa totalmente diferente.

Não. Não me queixo de nada. A noite correu como qualquer outra e não preciso de coisa alguma. Só de silêncio e de uma janela aberta que dê para um pomar em flor. Sem isso tudo são queixas e é precisamente por isso que nada são queixas.

O que mais me custa é o branco. Das pessoas e dos dias que se arrastam em direcção a um outro sonho. O branco estéril das folhas de papel, das seringas, das batas, das luvas, das toalhas, dos lençóis. O branco todo nas escleróticas abertas com muita força até eu compreender que é impossível seguir todas as manhãs a negação absoluta das queixas.

Espantosa, no entanto, é a evidência de que as horas passam. Que o sangue espesso dos dias, das tardes, das noites e das madrugadas. Que todo este sangue viscoso flui. No meu olhar há sempre o mesmo instante, completo e eterno, imune a horas do dia ou da noite. Imune a frio ou calor, suspenso numa lucidez cortante, que nenhuma escuridão ousa vencer. E, apesar de tudo, o mundo gira uma vez por dia. E há sempre pássaros ao longe, nos galhos da árvore grande que adivinho à distância.

Não sei como vim aqui parar, ou como o meu corpo (hoje nau encalhada, com rombos no casco e abandonada na praia do tempo) se derreteu nestes ossos e nestas peles sem futuro. Mas mais triste ainda, sem passado. Sem passado porque nas memórias cheias de cores (onde o branco era só das nuvens e das roupas acabadas de lavar no tanque, penduradas na corda debaixo do coberto) e de prados com flores. Nestas memórias mora um corpo diferente, são e forte como um touro à solta pelos campos. E hoje... Que a arena implacável ferve. Fere. Em golpes de bandarilhas desferidos em todos os ossos (Em todos os tendões. Em todas as articulações. Em todos os músculos. Em todos os dentros). Hoje, antes do meu olhar se tornar turvo. Antes que se reflicta nele a luz baça da última hora e o branco me apague o brilho das pupilas, as pupilas, o corpo todo. Hoje, antes de tudo isso, o meu corpo mutilado e turturado é uma mentira que me recuso a compreender.

Por isso, amanhã de manhã, quando me perguntarem com os olhos muito abertos, se me queixo de alguma coisa. Depois dos meus olhos neutros e do meu silêncio. Vou dizer que não, fechar os olhos e adormecer encostado ao tronco rugoso da árvore grande do pomar.



[19/10/2006... Escrito numa página de Diário Clínico, no comboio para casa... Deve ser tão triste ser um dos doentes nas camas dos hospitais, pelas manhãs...]

sábado, fevereiro 07, 2009

Areal

O dedo do teu pé a rasgar na mansidão do areal sulcos vivos. A escrever vales no meio de montanhas. A formar cordilheiras de areia tornadas letras. O dedo do teu pé. Que é o sacho de um lavrador qualquer num final de tarde. Que é o sacho do meu avô.

Ou a sachola pequena com que eu o imitava. E que o fazia sorrir como se o tempo parasse e existíssemos só nós na horta ao entardecer.

O dedo do teu pé que. Dizia. É um sacho a abrir na terra carreiros firmes. É um sacho a profetizar um bom ano e uma boa colheita. É um sacho a jurar jantares por vir e o fumo da chaminé em noites de Inverno.



O dedo do teu pé a rasgar na mansidão do areal sulcos vivos. Sacho a fertilizar a terra. A vida. De sementes de amor e dias felizes. Onde. Num deles. Eu de sachola na mão a escrever AMO-TE no fundo da horta.




[17/11/2005]

Onde estás?

Onde estás? - Gritei. Mas a noite engoliu as minhas palavras.






[Há tempos...]

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Sentinelas

Acabou o tempo e semeámos rosas da palma das mãos. Por cima de nós os restos de um dia que se punha. Ao longe. No horizonte de montes sobrepostos.

[Os montes mágicos. Soprados por uma ténue aragem de fim de tarde de Verão. Com árvores dispersas e espaço para sonhar entre elas. Os montes que eram promessas adiadas. Que apeteciam tanto como uma guloseima guardada no bolso da camisa. E o prazer de não a comer. De a ter guardada. A fazer aumentar. Segundo a segundo. Minuto a minuto. Hora a hora. A deliciosa expectativa do momento por vir. Do desembrulhar crepitante do papel de embrulho. Mais intenso. Mais nítido. Do sabor todo na ponta da língua. Na língua toda. Não só o corpo, mas a alma também, a saborearem mais que a guloseima. A saborearem a vida. Assim apeteciam os montes.]

Depois das mãos vazias. Do dever cumprido. O ar tornou-se mais pesado. Com cheiro a noite sem luar. Na mesma altura começou a lenta melodia dos sinos da igreja. Grave. Soturna. Compassada. Como pancadas ameaçadoras na soleira da alma. Como medos vertendo-se para dentro das gentes.

[ O ruído tenebroso dos sinos. A lembrar-nos da nossa mortalidade. A maneira como ecoa no negro. No silêncio da noite. Como cada badalada carrega todas as coisas sérias. E reais. E inevitáveis. Da vida. E como. Cada intervalo de silêncio entre elas. Dura eras. Eras cheias de tudo o que não cabe fora delas. Memórias dos que se foram. Sorrisos da pessoa amada. O calor do Sol a bater no rosto numa qualquer tarde de Primavera. O cantar dos pássaros na distância. O suor a escorrer da testa. A cair na terra acabada de sachar. O som do vento entre as folhas das árvores. O recreio da escola. A gritaria dos colegas. O ruído dos grilos. E depois outra badalada imperturbável. Convicta. A impregnar o ar de arrepios na espinha. E isto repetido. Uma vez. Duas vezes. Muitas vezes. Até tudo cessar em silêncio.]

Então fechámos os olhos. De-mo-nos as mãos. Sorrimos ao de leve. E. Calmamente. Caminhámos de encontro a um novo amanhecer.




[2008...]

As palavras foram

As palavras foram sortes jogadas na noite
Sementes de ódio e amor,
Sem as quais nada faria sentido.

Todas estavam prenhas de nós,
Dos nossos medos e dos nossos sonhos.
Foram palavras de sangue,
Vociferadas contra o vento.
Foram faróis que feriram e fenderam o vazio.
Foram facas de gume afiado
Apertadas contra as goelas do tempo.

Foram sóis.
Foram fogueiras acesas no breu,
Onde procurámos aquecer-nos da morte.

As palavras foram bombas explodindo da boca
E estilhaços de granadas no coração.
Mas também flores.
E delírios de pássaros doutros tempos.
Doutras eras.

As palavras foram silvas e urtigas,
Rasgando a pele de tudo.
Foram saraiva contra o rosto,
Granizo nos dentes. Trovoes nos tímpanos.

As palavras.
Foram.
E não mais as soubemos encontrar.

[2008]

terça-feira, janeiro 27, 2009

O voo

Fui à janela e nada. Ninguém do outro lado do vidro. A rua, talvez não rua mas algo, sem ninguém. Apenas a silhueta ténue de uma árvore através da espessura do ar.

Abri a janela e voei. Ou caí. Talvez tenha caído pensando que voava. Ou talvez voasse pensando em cair. De qualquer das maneiras soltei-me.

Abri a janela e de repente o meu corpo todo a viajar. Para longe da janela. E dos medos sem nome escondidos à espreita.

Isto durou uns segundos. Depois a janela abriu os braços e puxou-me para dentro. Para trás dos vidros fechados.

Sozinho num novo amanhecer.

[2007. Talvez....]

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Compasso de três tempos

A sereia. A vida. A dor dos caminhos de terra batida... A colmeia. A tortura. A clausura de não saber rir... A mão. A solidão. A tremura dos dias vazios... A máscara. A lágrima. A imensidão do mar longínquo...A sentinela. A baioneta. A força dura do aço na pele... A líbido. A raiva. A magia surda dos corpos... A dor. A serpentina. A explosão do Sol na cara.

A areia. A arena. A queimadura de viver.


[4/12/2009 - Escrito sem reticências nem espaços. Mas, na mente, tripartido. Aqui, pareceu melhor...]

quarta-feira, dezembro 31, 2008

A Revolução vai ter de esperar

Acabou o ano. Bem, talvez ainda não tenha acabado. Mas é como se tivesse acabado. Faltam poucas horas. Aqui em Portugal, claro. Noutros locais o ano já acabou.
Por isso, digamos que acabou o ano.

E que ano este. O ano mais pequeno de que me lembro. Não me importa que tenha mais um segundo. Para mim, este foi o ano mais pequeno da minha vida. Um ano pequeno que é como quem diz um ano vazio. E aqui uma pequena curiosidade. Dizem que quando se faz o que se gosta, o tempo voa. E que, quando se faz o que se não gosta, ele abranda, tropeça, quase cai, quase pára. Pois bem, este ano nem foi cheio e pequeno, nem vazio e grande. Foi, assim mesmo, pequeno e vazio. Quase uma impossibilidade. Quase uma nulidade. Quase um pequeno absurdo temporal. Um lapso. Um algo-que-não-existiu.

Chego ao fim do ano muito relutantemente. Com dificuldade em aceitar que, dentro de horas, serei obrigado a festejar outro ano. Carrego a ideia de que 2008 ainda mal começou. Lembro-me claramente das promessas que fiz no primeiro dia de 2008. Lembro-me da esperança. Custa-me admitir que não se passou nada como eu previa. Que a esperança, em que acreditei firmemente (e aqui reside a desilusão, pois há muitas esperanças em que não creio... mas nesta cri muito), morre hoje à noite. Pois a esperança tinha uma delimitação temporal. 2008 ia ser um ano em cheio, um ano em grande! E... vejam... até agora não foi senão um ano em vazio, um ano em pequeno. Falta-me o cinismo nestas últimas horas do ano. O cinismo necessário para que, dentro de horas, renove votos e, com isso, desenterre outra esperança do fundo da alma.

Outra esperança para ocupar o lugar da falecida no segundo anterior. A nova esperança de 2009, tão igual à do 2008, que passou sem eu lhe ter posto a vista em cima. A nova esperança de 2009 a substituir a velha esperança de 2008, ainda viva subrepticiamente até ao ...0... da contagem decrescente.

Falta-me o cinismo para sorrir perante a hora-notícia de que me menti. Falta-me coragem para sorrir perante o minuto-notícia de que mais um ano findou e eu não empecei.

Falta-me lata para sorrir perante o segundo-notícia de que 366 dias e 1 segundo passaram sem que eu me erguesse do cadeirão da mente e começasse a revolução.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Os dias movediços

Uff... há dias que atravessamos como se estivéssemos perdidos num bosque muito escuro e cheio de perigos. Um bosque claustrofóbico, onde cada sombra nos quer agarrar pelos tornozelos e impedir de chegar a casa.

( A casa de pedra, com o fumo bom a sair pela chaminé e com raios de luz a escoarem-se pelas frestas da porta e das janelas)

Hoje foi assim. Parecia correr, como nos sonhos, mas não saía do lugar. Parecia olhar para baixo, a cada momento, para me ver descalço, ou de chinelos, ou de pijama. Parecia tentar chegar a algum lado. Mas, a cada movimento, parecia afundar-me mais nas areias movediças do dia. Do dia movediço em que acordei.

É por isso que há três tipos de dias, quando chegamos a casa. Os dias em que nos sentamos no sofá. Os dias em que tombamos sobre o sofá. E os dias movediços, em que caímos aos pés do sofá e rastejamos uns centímetros, de joelhos, para podermos pousar a cabeça sobre o assento.

(E, assim, desistirmos um pouco mais.)

sábado, outubro 04, 2008

Feitiçaria

Os dedos em cima do teclado, como num piano. Tensos. Prontos a disparar por sobre a maciez das teclas. O premir abafado e seco. Agradável. Quase aconchegante. Um ritmo que nos embala. Até parecer que os dedos se mexem sozinhos. Com vontade própria e sem que nós os possamos impedir.

Nesta altura as palvras parecem surgir do vazio em nosso redor. As mãos são redes de pesca. Desfocamos o olhar e são mesmo. Dançam mecanicamente. Dançam freneticamente. Dançam harmoniosamente. Como redes de pesca erguidas. Lançadas. Recolhidas. Na madrugada duma traineira ao luar. As palavras, peixes voláteis e milagrosos, caem das redes quando estas beijam o convés. E então são, por instantes, nossas.

Outras vezes é magia pura. As mãos agitam-se muito depressa. Tanto que os olhos nos mentem. E vemos os dedos multiplicarem-se num enorme rasto de luz. É nessa altura que. Da ponta dos dedos. Nos caem os pós de perlimpimpim. Então, deixamos de tocar o teclado. Levitamos por cima dele. E os pós de perlimpimpim rodopiam numa espiral que ergue as letras ao ar. Bem alto. Bem alto. E as deixa cair (Que assombro!)abraçadas, em forma de palavras.

Há ainda ocasiões em que as mãos são duas aranhas gigantes. Sim, é isso que elas são! Olhem para elas! Aranhas sagradas e sem descanso, tecendo uma teia de sonhos. Uma filigrana quase invisível de letras. De palavras em branco-pérola. Oiçam o seu roçagar. A sinfonia que advém da sua azáfama. Rendilhada e cheia de vida. Mística e libertadora.

sábado, julho 26, 2008

Cansaço.

Um dia. De repente. Cansei-me. Sem que nada o indiciasse. Nada de que eu me apercebesse, claro está. Ninguém me garante que, no fundo do meu inconsciente, as rodas do mecanismo não estivessem já em movimento. A rodar em surdina. Activando silenciosamente toda a engrenagem. Todas as sinapses por sentir. Que conduziram a isto.

Um dia, de repente, cansei-me. Cansei-me de tanta coisa de que nunca me cansara antes. Cansei-me de tanta coisa que sempre me dera prazer e alegria. Cansei-me mesmo. Receio não saber explicar bem o que se passou. A verdade é que olho para trás na linha do tempo e vejo dois momentos adjacentes. No primeiro, tudo estava calmo. Eu e as minhas rotinas todas. Eu e o meu sossego despreocupado. No momento imediatamente seguinte, cansei-me. E fiquei mais livre das rotinas. Que, às vezes, vejo-o agora, pesavam como se fizessem parte de mim. Como se fossem apêndices muito pesados e grandes e disformes. Como um braço extra, com uns 2 metros de comprimento. Ou uma perna de chumbo a sair do fundo das costas.

Cansei-me um dia. De repente. E desde esse momento sou mais eu. E nunca mais precisei de descansar.

sexta-feira, julho 11, 2008

As gavetas do quarto...

Abri outra vez uma das gavetas. Uma das muitas espalhadas pelo quarto. Tantas que o quarto parece existir para que elas o encham. Abri uma das gavetas e tudo recomeçou. Mais uma vez o vórtex (Gosto da palavra vórtex. Será que deveria escrever vórtice? Não me interessa. Vórtex.) aspirou-me para outros tempos. Outros dias. Outros eus.

E mais uma vez fui a Alice a cair pela toca abaixo. E à frente dos meus olhos incrédulos desenrolaram-se imagens do passado. Imagens em papel timbrado. E por timbrar. Palavras e mais palavras. Frases completas vindas do silêncio sepulcral de cartas e postais. E mais cartas. E mais postais. Frases de amor e de dor. Palavras meigas. Palavras duras. Palavras afiadas como facas no peito. Palavras moles a desfazerem-se na ponta da língua. E mais postais de todas as cores. Paisagens que nunca visitei. Envelopes brancos com rebordo azul. Envelopes brancos. Vermelhos. Outros com laivos de cor-de-rosa. Envelopes castanhos em papel reciclado. Letras por todo o lado. De todos os tipos. Azuis e pretas. Vermelhas. Cor-de-rosa ou de outra flor qualquer. Letras redondas. Letras esguias. Letras tombadas ora para um lado ora para outro. Letras cheias de vida. De vidas.

Foi como se se levantasse dentro do peito uma tempestade. Um furacão que varre qualquer coisa por dentro da alma. E deixa tudo meio vazio. Meio triste. Meio incompleto. Meio sozinho.

Num ápice, no entanto, tudo acabou. Não caí no fundo da toca. Ou da gaveta. Apanhei simplesmente o passado. Os passados. Do meio do chão para onde haviam caído e por onde se haviam espalhado. E guardei-os bem no fundo da gaveta.

Depois fechei-a.

E aqui fiquei.


[Hoje]

terça-feira, abril 29, 2008

O limbo

Passaram já muitos dias desde que tudo ficou na mesma. Muitos dias desde que o mesmo dia se arrasta à espera de uma noite e de uma madrugada. Passaram já muitas horas, fechadas dentro de si mesmas como se nada brilhasse por fora delas. E passaram os minutos e os segundos loucos. Loucos e iguais. Iguais e cinzentos. Cinzentos e cor de chuva. Ou de pó. Ou será o cheiro? De qualquer modo, passou tudo. Ou terá passado nada? Não sei. Não me recordo. O dia não acaba. Não passa. Não cessa. E por dentro tudo falece. Aos poucos. Como numa sinfonia ao longe, à beira da falésia. Lenta como só as sinfonias lentas. (E ainda mais. Como se os sons não fossem sons, mas fotografias de sons espalhadas pelo céu azul-quase-noite.) Lenta como o repicar dos sinos na igreja de um dia.

Fora isso nada. Como nada? Nada. Uma manhã-tarde que não se despe na noite. Uma luz fosca. Dúbia. Inerte. Que tudo mirra. Que tudo proíbe. Um limbo onde nada cessa. Onde nada principia. Como um calvário à luz gasta de um sol-que-nunca-se-põe.

[Agora mesmo... :)]

terça-feira, abril 08, 2008

A praça...

Há um rumor no silêncio dos dias que me faz pensar em ti. Recordar-te entre os atropelos do metro, em plena correria da vida quotidiana. Há qualquer coisa de ti, ainda, aqui, agora.

O perfume de rosa que emanava de todos os poros do teu corpo, o teu cabelo brilhando ao Sol, a agilidade felina da tua pele, os teus passos decididos, firmes, temerários, que foram feitos para governar o mundo, neste ou noutro tempo qualquer. Fecho os olhos e lá estás tu, a percorrer a praça pela manhã, o vestido ondulando ao vento, a terra batida a esvoaçar em redor, o ritmo mecânico do bater dos saltos no empedrado. Eu estava ao fundo, no banco de jardim que ficava debaixo do plátano centenário, donde se via todo o largo principal. Ao fundo, dominante, a velha igreja, com o catavento corroído mais pelo passar dos dias do que pela chuva, que nesses anos era pouca, em cuja escadaria mendigos proliferavam.

Dos lados, as antigas casas senhoriais, transformadas com o decorrer do tempo e o declínio das fortunas individuais, em mercearias, tabernas e retrosarias. Havia ainda o edifício dos correios, do lado esquerdo da igreja e, no meio da praça, a estátua de um combatente sem nome, sem pátria, sem medo e até sem cabeça, desde há décadas.

Era domingo de manhã, à hora de saída da missa, não havia os vendedores ambulantes de sempre, não havia o apregoar constante, o buliço infernal dos dias de semana. O sino dava as dez badaladas e então começava o parto prolongado das portas da catedral, os mais apressados primeiro, estugando o passo até desaparecerem na esquina mais próxima, ainda de chapéu na mão e já desabotoando o casaco, demasiado quente para qualquer dia do ano. Vinha depois o pelotão de gente, heterogéneo e informe, que descia as escadinhas da igreja e se espalhava pela praça como um enxame de abelhas ao qual se roubou a colmeia. Por fim, começava o longo desfile dos mais demorados, dos que se delongavam mais em frente deste ou daquele altar, das beatas que vinham de se confessar, dos que tinham adormecido a meio da função.

Tu vinhas com o grosso da multidão, mas lembro-te hoje como se viesses sozinha, destapando o véu aos primeiros degraus, dando esmola ao mendigo que te parecesse menos merecedor, brilhando na multidão sem rosto e sem nome como uma pérola num barril de petróleo.
Seguia então os teus passos, a graça do teu corpo a serpentear por entre as linhas austeras e antiquadas da praça, a serenidade insolente do teu porte, o olhar altivo e imperial.
E os teus passos silenciavam todos os ruídos em teu redor. Cessava o rumor incoerente das pessoas da praça, o silvo do vento por entre os ramos da árvore, o trotar dos cavalos, ao longe, numa rua da periferia da cidade.

Vejo-te agora tão nítida como então. Vislumbro o teu vestido a ondular no meio da multidão que sai do metropolitano, capto um relance do teu rosto da janela suja do comboio, volto-me para trás nas ruas aturdidas da cidade depois de ouvir os teus passos seguros, confiantes, vivos.

A vertigem do tempo é uma espiral que me atrai para ti, para a alegria imemorial de te ver bela e jovem e fresca, como nessas tardes de Primavera primordiais.



[2004... nada de especial]

terça-feira, janeiro 29, 2008

Magoito

Era frio. Fim de um Setembro dorminhoco. A tarde caía sobre o mar reflectida nas falésias. No ar a promessa de uma noite estrelada. Café. Esplanada do café com vista para o fim de tarde. As tuas pernas cruzadas. O café meio vazio. O mil folhas meio comido. Qualquer coisa nos teus olhos dizia adeus, mas eu não sabia o que era. As rugas-bebés em torno dos teus lábios. Dos teus olhos. As tuas mãos esquecidas entre a mesa e o vazio. No ar uma gaivota igual às outras. E o guinchos iguais aos guinchos de outros dias. Mesmo assim a tua boca mais comprimida do que o normal. Uma certa inquietude nas pupilas.

E depois. A tua mão a afastar um pouco o cabelo dos olhos. Um leve inclinar de cabeça para trás. Um pestanejar rápido numa inspiração prolongada.


- Não dá!


( O arrastar da cadeira que não ouvi. O teu lugar vazio. O café meio cheio. O mil folhas meio intacto. A nossa conversa meio acabada.

E na boca o sal. Igual ao das ondas lá em baixo. )

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Cegueira

Ultimamente. A dificuldade grande. Anteriormente desconhecida em mim. De descobrir os lugares secretos nas coisas. De conseguir encontrar. Por detrás das fachadas de tudo. Os recantos mágicos que nos fazem sorrir. Que salpicam de vida. E de luz. Até os dias mais escuros.

Sabem do que falo. Daquela sensação de calor que nos invade por dentro. Quando vislumbramos o cantinho em que cada pessoa se esconde do mundo. O cantinho que tenta a todo o custo proteger da vista de estranhos. O calor que nos invade quando sentimos a pura beleza desse santuário. A alegria contida. Reservada. Profunda. Que sentimos por descobrir. No meio do que até então era alguém. Um ser humano. Como nós.

Ou apenas a felicidade menos metafórica de descobrir. Fisicamente. No meio dos locais sujos e degradados onde somos forçados a viver. Um recanto bonito. Apenas isso. Bonito. Sem mais adjectivos ou figuras de estilo. É difícil achar a beleza nos dias que correm. Pelo menos para mim tem-no sido ultimamente.

Mais nada. Apenas isto. A dificuldade que dantes não sentia. De descobrir os lugares secretos nas coisas.


( Às vezes não sei se são os olhos. Se estão gastos. Se estão habituados a todas as emoções, a todas as alegrias e a todas as tristezas que este mundo tem para oferecer. Outras vezes penso que o problema está noutro local. Uns dirão que no coração.Outros dirão que no cérebro. Ao certo só sei que já poucas coisas me fazem sorrir, como faziam. Até o espanto se me está a tornar, de dia para dia, um sentimento estranho. Às vezes penso nos peixes. E nos outros animais, mas principalmente nos peixes. Diz-se que têm uma memória de curtíssima duração. Que nem lhes permite ter a noção de que estão dentro de um aquário. Eu, se estivesse preso num local para toda a vida. Também gostaria de ter essa vantagem evolutiva... para não enlouquecer de vez.

...ei... percebem a ironia? ...

Este ano, no Carnaval, vou de peixe!)

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Dias curtos

Está escuro e vazio aqui. Está silêncio. Está solidão. Está um aperto qualquer a esmagar um algo dentro de mim (eu todo?). Está frio. Não disse já tantas vezes isto? Que está frio por dentro. Mesmo que por fora não esteja. Mesmo que haja Sol e sombras frescas ao longo de uma vinha cerrada. Pois digo-o de novo. Está frio. E já que estamos nisto, digo que está escuro também. E vazio. Já que recaí na tentação das vírgulas, tanto me dá que me repita em palavras. O que eu queria era algo novo. A panaceia, não o placebo. Estou farto de placebos.

Ultimamente tenho estado diferente. Tenho sido diferente. Há qualquer coisa cá dentro que não pára de me angustiar. Eu sei o que é, mas não digo. Chamo-lhe "coisa", para não lhe chamar pelo nome. Apenas nomeá-la me entristece e, quase, me ensandece.

Não vale a pena mais isto. Por hoje, terá de bastar a convicção de que está solidão, dentro de um frio escuro e vazio. Com um silêncio que esmaga tudo, como melodia de fundo. Para quando (se alguma vez de novo...) os dias grandes de Verão?

quinta-feira, novembro 29, 2007

Preconceito

É incrível. A quantidade de vezes em que não vemos as coisas como elas realmente são. A quantidade de vezes em que olhamos e pensamos que toda a verdade está no que vemos. A quantidade de vezes em que conceitos pré-formados nos turvam os olhos e nos impedem de ouvir o bater do coração.

(E até pensamos que não. E até pensamos que não somos assim. E até sabemos recriminar e apontar o dedo a todos os que fazem o mesmo. E até nos julgamos diferentes. )

É incrível. A maneira sub-reptícia e dissimulada como trazemos nevoeiro nos olhos e almofadas no coração. Que não nos deixam ver. Nem sentir. A verdade que vive. Vive! Nas coisas.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Ninja

Tenho mil folhas rasgadas em cadernos na alma. Outras tantas escritas por todo o lado. Sou escritor-furtivo. Ataco em qualquer sítio, a qualquer hora. Ninguém me vê ou conhece como é a tinta das minhas canetas num papel timbrado. Ninguém adivinha os dentros por escrever que germinam em mim como ervas daninhas.

Sou ninja. Das palavras. Não faço sons. Ninguém me ouve quando passo pelas folhas como comboio sem destino. Ou com um. Lá muito ao longe. Quando me faltar a força na ponta dos dedos.



[2005]

Insónias

De vez em quando as insónias agarram-me como se elas próprias tentassem dormir e não conseguissem.




[Ha muito, muito tempo...]

terça-feira, outubro 02, 2007

Calor

Searas dos dias.
O tempo seco e abrasador
das palavras inúteis.
Árvores sem sombra.
Fantasmas esquecidos e sedentos.
A distância mentirosa.
O bailado de morte das horas.
Por todo o lado a certeza.
A certeza que corta fundo
na pele árida.
De que amanhã é só uma
palavra poeirenta.





[Há uns meses]

Palavras

Dantes tinha palavras. Guardadas num qualquer saco sem fundo. Escondidas dos locais à superfície da pele, onde podiam sujar-se com a poeira dos dias.
Ficavam resguardadas de tudo. E de mim. Até ao momento exacto em que qualquer engrenagem silenciosa da alma se iniciava. E as pedia insistentemente, como se não houvesse mais nada de essencial na vida. Como se fossem a solução para todos os problemas, a panaceia para todos os males.
Era então que o saco de palavras se abria o tempo exacto para que aquelas necessárias viessem até mim, como pequenos milagres.

Hoje, infelizmente, parece que o saco desapareceu. Ou talvez a engrenagem esteja perra. Ou talvez as palavras tenham deixado de ser essenciais. Não sei bem.

Só sei que. Agora. Já não tenho palavras.

quarta-feira, julho 18, 2007

O guardador

Guardo coisas de mais. Fora de mim, nas gavetas/alçapões-de-memórias do meu quarto. E dentro de mim, em qualquer lugar inacessível à vista, mas doloroso na alma. Por vezes guardo-me a mim mesmo, hermeticamente fechado, por dentro de uma cara e de uma atitude que não me são transparentes.

[Antigo...]

sábado, junho 30, 2007

Espero por ti nas brumas da noite

Espero por ti nas brumas da noite.
As costas contra o frio áspero do muro.
O muro contra o frio rugoso das costas.
Acendo um cigarro para que o tempo passe mais depressa.
Para que o tempo me morra entre os dedos num clarão laranja.
Até a polpa dos dedos doer de calor.
Na mão esquerda um ramo de tulipas embrulhado em papel azul.
A perna esquerda esticada a roçar no papel azul crocante das tulipas.
O pé direito no muro e o joelho em riste.
O relógio de pulso que não avança.
Parado como numa hora de ponta infernal.
O vento parece soprar com mais força.
Como se quisesse varrer-me da rua.
Varrer a rua de mim.
O azul estaladiço do papel das tulipas contra a perna esquerda.
O tic-tac quase imperceptível - ensurdecedor - do relógio.
O clarão laranja entre os dedos.
O frio gélido - de morte - nas costas.
A dor do calor na polpa dos dedos a anunciar-me mais um fim.
Do cigarro.
Da espera e da esperança desta noite.
O pé direito de encontro ao muro impulsiona-me todo para fora dele.
Vai-se o frio do muro e fica o frio glacial das costas.
Arremesso o ramo de tulipas por cima do muro.
Para o quintal da casa abandonada onde um dia viveste.
O papel azul amarrotado a tomar o seu lugar por entre centenas de outros papéis amarrotados e crocantes.
De todas as cores.
Com tulipas murchas - ou por murchar - dentro.
Afasto-me cabisbaixo.
Amanhã virás.
E fugiremos então.
Como me prometeste.
De mãos dadas pelas brumas da noite.
Enquanto em tua casa todos dormem.
Eu esperarei por ti no muro.
Comprar-te-ei um ramo de flores sem que saibas.
Tulipas como tu gostas.
Embrulhadas em papel crocante para que sorrias.
Fugiremos então.
De encontro a uma alvorada prometida.
Sim.
Amanhã virás.
Agacho-me.
Encolho-me todo contra o muro abandonado.
Sem ti.
A cabeça entre as mãos.
E choro.
Choro.
Choro.



[Não fumo...]

Sintra a meio da tarde

Sintra a meio da tarde. Enquanto os turistas percorrem as estreitas vielas da vila velha. Um Sol quente e desejado de uma Primavera que ainda não o foi. Apenas uma leve brisa a enganar o calor. A soprar o lume dos corpos.

Os sons todos. Pessoas que falam ao longe e ao perto. Em português e em línguas díspares, numa amálgama de Babel. O esvoaçar rápido das pombas a levantarem voo, enquanto outras arrolam na distância. O sino da igreja a tocar duas vezes. O ruído de motores. De todo o tipo de automóveis e também de uma avioneta que agora passa. O trotar dos cascos dos cavalos a entoar no alcatrão, na calçada.

O tinir metálico dos postes embandeirados a dançarem com o vento. O estalar do teçido de que são feitas as bandeiras.

Travagens. Os passos das pessoas. Algum carro apita.



Assim. A meio da tarde. Sintra é uma canção de embalar.

segunda-feira, maio 14, 2007

Natal

É dia de Natal. 2006. A serra. Hoje. Usou a a paleta toda de cores para dizer adeus ao dia. No céu as nuvens, apesar de imóveis, parecem partir. Fazem lembrar muitos pedacinhos de algodão cinzento em carreira. Contra um fundo em gradiente. De vermelho a azul. Como um arco-íris disperso. Como um disperso-íris no horizonte.

Em redor há casas fechadas com gente dentro. Ao lado de casas fechadas com gente dentro. Assim numa extensão de quilómetros até o sopé da serra nascer da planície de paredes brancas. Das janelas pendem cachos de luzes às cores. Ou pais-natais em pose de assaltantes subindo as casas. Nas ruas há pouca gente. Poucos carros. Poucos sons.

Presumo que os sons estejam fechados em casas com gente dentro. Gente cujos rostos não adivinho. Cujo sorriso não posso imaginar. Gente feliz, talvez. Gente triste que pensa (ou que tenta. Ou que quer acreditar) ser feliz, também. Gente que pendura cachos de luzes às cores de frente para um pôr-do-Sol inesquecível e se fecha em casas com gente dentro.


E cá fora. Eu. Apesar de imóvel. Pareço partir.




[Natal.2006]

quinta-feira, abril 26, 2007

Fantasma...

A tua imagem seguiu-me o dia todo. Acordei de manhã com a cabeça pesada e os olhos semicerrados e, enquanto me habiuava à última escuridão da madrugada, vi-te na janela. Fantasma de rosto duro e sem expressão.

Mais tarde, no Metropolitano, em hora de ponta, viajaste perto de mim. Entre nós não haviam mais de sete corpos a balouçar com o andamento da carruagem. Estavas encaixada entre um homem vestido de negro (rosto mirando o chão, cabelo preto a rarear no topo da cabeça) e uma idosa de olhar surpreendentemente jovial.
Trazias um vestido azul, com a cor do céu quando acaba de nascer o dia. Esvoaçava em teu redor como searas perdidas na distância de uma paisagem que não sei situar. Estavas feliz. Sem a máscara fria e dura dos dias frios e duros da vida.

À noite. Quando reentrei em casa. Estavas sentada no sofá. Em frente da televisão apagada. O cabelo caía-te pelos ombros em tiras irregulares de castanho escuro. As mãos escondiam-te o rosto. Os joelhos estavam juntos. Os pés também. Toda tu eras uma enorme solidão parda.
Não te mexeste qundo fechei a porta com ímpeto. Não te mexeste quando me descalçei, nem quando pousei o casaco nas costas da cadeira. Não te mexeste quando fingi trautear uma canção que me ensinaste um dia.

Acabei por ir até à cozinha, para sentir o gelo da bebida a queimar na boca. No esófago. Até ao estômago.

Quando regressei à sala não estavas. No teu lugar apenas o fim de mais um dia. Arrastado e igual ao fim de tantos outros dias.

Sentei-me no sofá (ao teu lado, se lá estivesses). Liguei a televisão por instantes. Terminei a bebida. E depois ergui-me e, como um condenado à morte se dirige ao cadafalso, escoltei-me até ao quarto. Onde caí na cama com o peso do mundo. E fechei os olhos com muita força, para te ver outra vez.


[25/04/2007]

sexta-feira, março 16, 2007

Manuel e Alzira

Dantes a estrada de terra batida era tudo. A poeira que se elevava do chão ferido pelas rodas do carro sabia bem como beijos de mãe. Do lado direito. Ao fundo da estrada estreita, onde mal cabia o nosso carro, dois pedaços de muro dividiam o mundo. Ajudados pelo portão de ferro vermelho. De onde se soltavam lascas de tinta que deixavam à mostra a ferrugem castanha do tempo.

O portão que subia em pequeno. Com os pés fincados no bordado de ferro. Que subia para me sentir balouçar nas dobradiças gastas pelos anos. O portão onde me feri na coxa esquerda. Com a ponta de uma seta de ferro que se erguia no ar.

Para lá do muro e do portão havia o vosso mundo. A relva marcada pelo passar dos pneus. O canteiro de flores do lado esquerdo, antes das escadinhas de pedra. Onde vocês nos esperavam sempre como se a salvação estivesse no nosso abraço e tudo o que era mau se escondesse a correr, no fundo do baixo que ficava a seguir à casa. A seguir à relva.
Mas antes da horta. Antes dos morangueiros. Antes das pereiras que vertiam os seus frutos no chão como se chorassem muito. E eu não as quisesse perceber.
Do lado direito outras árvores. Outras plantações. E ao fundo mais árvores altas. Com bicicletas e câmaras de ar antigas. Mais antigas do que eu. Presas nos ramos.

O mundo todo que havia nesse quintal. Quando era pequeno e olhava para as árvores do fundo era como se olhasse para todo o Universo. Gostava muito. Gostava tanto. De pensar que as árvores do fundo ficavam numa distância infinita. Que o caminho até lá era mágico e que tinha segredos por descobrir.

Acho que foi por isso que nunca gostei de passear em toda a extensão da horta. De uma vez. Para não ter a certeza triste e dolorosa que aquele espaço era finito. Pequeno. Talvez. Até. Sem magia.

(...)

Agora tudo mudou. Passei lá neste Verão e deu-me nos olhos uma tempestade.
Não restava nada do que um dia existiu. De um certo modo estava tudo igual. Muro. Portão. Relva. Canteiro. Degraus. Porta de madeira da casa. Quintal. Árvores do fundo. Mas estava tudo triste. Estava tudo morto. Tudo morto e transformado numa aberração do paraíso que fora.

Desde que vocês se foram. E não há ninguém à nossa espera nos degraus das escadas. Para nos abraçar e dizer quantas saudades tinham tido nossas. Tudo está morto. E agora... Eu não posso... Abraçar-vos e dizer quantas saudades tenho vossas.




[06-12-2005]

terça-feira, janeiro 16, 2007

Acordar ao teu lado (num tempo de espuma e relógios parados)

Eram sete da manhã e a luz entrava nua e fria pelos espaços do estore mal corrido. No ar a fragrância da noite reinava ainda sobre a multidão de coisas por arrumar que habitava o quarto.
O teu corpo encostado. Ancorado. Ao meu, como navio no cais à espera de ondas por vir. A palma da minha mão aberta.

As rugas da pele a envelhecer. A secura dos dedos. As veias proeminentes. A lembrarem rios e desertos e serras.

Estendida sobre a tua coxa semi-desvendada por um capricho do lençol e da noite. A sensação quente e doce do toque da tua pele na ponta dos dedos. Como um embalar-te sem te ter nos braços.

A brancura do teu pescoço. Os minúsculos e inúmeros cabelos a emergirem da tua nuca com a beleza mágica duma orla de floresta. O cair dos teus cabelos sobre a almofada. Sobre o ombro de encontro à cama. Uma clave de sol a desenhar a tua orelha no amanhecer do dia.

O calor morno do teu corpo a dormir a chegar até à fronteira do meu. A atravessar a barreira física da pele e a encher-me todo de um dia de Sol.

A janela aberta a trazer até ao silêncio estático do quarto uma vida de sons matinais. Uma sinfonia sem partitura e interminável. Os sons a virem até nós aos saltos como crianças traquinas. Os sons a virem até nós. A mim do lado de cá do sono. Rejeitados por ti na inocência profunda do mesmo.

O passar da manhã a ser um rio suave e forte. Um rio suave e forte a desaguar no teu primeiro estremecimento. No fôlego de brisa que te faz levantar as pálpebras e ver o mundo como pela primeira vez.

E depois, o leve aflorar no teu rosto de um sorriso. De um sorriso sem Sol nem Lua. De um sorriso feito de amor e sem nada a temer.
A montanha parada e sagrada que é o teu corpo a agitar-se. E a virar-se para mim com a lentidão lânguida de um gato a espreguiçar-se ao Sol.

Os teus olhos.

Os teus olhos a serem um novo dia dentro do mundo. Um outro mundo dentro do mundo. Os teus olhos cor de amanhã. A fervilharem de dias por acontecer. De sonhos por concretizar. De manhãs por acordar.
Os teus olhos sem forma. Ou com a forma de duas gotas de orvalho em pleno ar. Antes do calor da terra as acolher nos braços abertos.
Os teus olhos como fogueiras em noites de São João. Como lareiras nas vésperas de Natal. Acolhedores e aconchegantes. Intemporais e concretos.

Os teus olhos a olharem-me na imensidão do tempo. Na solidão de nós. Sem receios e sem promessas.

Uma carícia no rosto. Na tua pele. A estimular os receptores sensoriais escondidos aos milhares debaixo dela. Estes a levarem mensagens aos neurónios sensoriais, à espinal medula, ao córtex. Milhares de pequeninas mensagens que eu supunha dizerem. Que eu sabia dizerem. Que te amava e que o mundo não seria mundo se eu não pudesse passar a mão, numa carícia, pelo teu rosto.

Depois vinha o magnetismo irresistível dos lábios. Os dois pólos contrários, que éramos nós. Que somos nós. A atrairem-se com forças por inventar. Por descobrir.

A força gravitacional é fraca. Nem sequer é força. Nem é nada. Comparada com a atracção magnética que conduz os meus lábios e os teus lábios ao encontro a meio caminho.

Numa suspensão do tempo. Num tempo de espuma e relógios parados. O momento sublime. Genial. Sinfónico. Em que os meus lábios repousam nos teus. Em que os teus se vêm aconchegar e encontrar nos meus.
Acontece tudo num espaço que é sempre novo. À nossa volta todas as paisagens dos dias que foram nossos. Dos dias que haviam de. Que hão-de. Ser nossos.



[02/03/2006... Quando o escrevi deixei-o incompleto. Mas passou tanto tempo que vai ficar assim.]

O prazer da escrita

De noite. Sempre. A vontade esporádica. Mas poderosa. De escrever. Numa altura precisa. Quando o sono torna irreversível o caminho até ao leito mas a mente anseia ainda o labor purgante do pensamento.
É um sentimento único. Como o expandir físico de um cubículo apertado. Como passar a respirar ao ar lire depois de estar cativo numa caixa sem respiradouro. Como estas coisas mas diferente ainda é a sensação que me assola. O prazer de sentir que algo pode fluir de mim e materializar-se nas linhas rítmicas da vida. Feitas caderno por marcar.
O prazer que sinto em saber que nestas alturas posso escrever é muito superior (Sacrilégio!) ao próprio prazer da escrita.




[Há uns meses. Mas podia ser um dia qualquer.]

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Às tantas

Às tantas não quero saber. Sou uma pessoa que não quer saber. Foi nisto que me tornei. Um algo que não quer saber nada do que se passa no vazio por fora de si.


Às tantas acordei um dia e no lugar do coração tinha uma pedra sem movimento. Foi aqui. A este lugar sem som e frio. Que tudo veio dar. Que tudo. Veio dar.


Às tantas sou mais um. Mais um numa fogueira gigantesca. Mais um que tem nãos em vez de olhos. E paus em vez de mãos.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Orvalho

Agora. No fim da noite. Quando tudo parece ter passado. Sem se ter no entanto a certeza de se ter passado por alguma coisa. Ou de se estar apenas a iniciar uma outra. Agora quando o silêncio começa a corroer a euforia falsa. A euforia falsa que talvez só exista para proteger deste silêncio. Do silêncio de nos sentarmos sozinhos a meio da noite, de frente para nós, num confronto interno duro e mutilante…

Agora que desce sobre nós, como o cacimbo sobre a vegetação nas madrugadas geladas de Inverno, o peso das decisões tomadas. Tudo parece um pouco mais difícil… E somos folhas dobradas pelo peso de duas gotas – espessas, densas, lentas - de orvalho…

sábado, dezembro 09, 2006

Sereia

Neste momento tudo me prende aqui. Mas no entanto vou. Tenho que ir. Apesar das pessoas que vão ficar. Das saudades grandes que eu e elas vamos ter de nós. Apesar das lágrimas que vão salgar a cara de vez em quando. E das memórias. Que umas vezes hão-de aquecer o coração e outras nos hão-de tornar lívidos de frio e solidão. Tenho que ir.

Alguma coisa dentro de mim me diz que tem de ser assim. Que este é o caminho. Que tudo irá correr bem. E mesmo que não corra pelo menos ficará a certeza insofismável - por oposição à incerteza mortificante (de não ter tentado) - de ter tentado. Talvez seja o mesmo ímpeto que há mais de 500 anos levou o meu povo a partir. Contra mães que choravam. Contra filhos que em vão rezavam. Contra noivas que ficavam por casar. Para que o mar fosse nosso.

Ou talvez seja apenas o apelo irresistível da distância. O canto longínquo de uma sereia interior. Contra o qual não me posso amarrar a um mastro ou tapar os ouvidos com cera - como Ulisses. Contra o qual poderia talvez cantar mais alto. Cantar mais docemente como Orfeu para salvar os Argonautas. Tornando a sereia em rocha precipitada no mar... Mas não sei se aguentaria o silêncio.

Cada um de nós traz uma canção da distância debaixo da pele. Uma melodia exótica que nos chama e nos tenta resgatar ao conforto estéril do quotidiano. Um destino qualquer para onde partir e - quem sabe? - por preencher.

É por isso que. Ainda que neste momento tudo me prenda aqui. Pessoas. Saudades. Lágrimas por vir. Memórias de sorrir e chorar. Eu tenho que me soltar. E ir. De encontro ao canto longínquo da sereia.

terça-feira, novembro 07, 2006

Vou ser assim!

No outro dia, enquanto ia a caminho do Hospital uma vez mais. Uma manhã mais de um dia mais. De uma semana mais. De um mês mais. De um ano mais. No outro dia, enquanto ia a caminho do Hospital uma vez mais. Parei.

Parei no meio da multidão que passava apressada. Ora para sair ora para entrar pelos portões de ferro sempre abertos que guardam a entrada. Parei e pensei. Como acordando de um sonho. O que estou a fazer?

Só isto. O que estou a fazer?

Senti-me um carro eléctrico sobre carris. Que percorre todos os dias as mesmas ruas gastas. Que não pode virar à esquerda ou à direita (Porque vai em frente. Sempre em frente. Sem poder escolher um beco. Uma viela. Um recanto. Para se esconder do metal frio dos carris que levam a lado nenhum porque levam sempre aos mesmos lados) . Cujo caminho está traçado e para quem não há esperanças.

Senti-me um carro eléctrico sobre carris. Preso. Talvez mais do que numa prisão. Por estar preso pensando estar em liberdade. Por estar preso nas ruas da cidade. Entre as cores. As formas. Os cheiros. Os sons. As paredes. Das pessoas todas em meu redor.

Desde então até agora. Desde esse momento até agora. Quando passaram alguns dias sem nome ou número. Não me consigo concentrar. Os dias são diferentes. As horas custam a passar e o entusiasmo aparece esporadicamente na crosta de mim.

Uma só ideia domina o meu espírito. Não quero mais. Não quero mais estes carris que me guiam o destino. Vou ser eu. Vou ser feliz. Como alguém disse um dia, a minha vida não é nada disto. Não sei bem como é. Mas sei que não é nada disto.




N'Os Maias. Um dos livros que me marcou profundamente. Há uma frase linda. Linda. Linda. Que diz, acerca da vida planeada e da realidade que a substitui, vou ser assim, porque a beleza está em ser assim. E nunca se é assim. É-se invariavelmente "assado".

Naquele momento revelador senti-me assim... assado. Mas. Foi desde aí. Que disse. Que começei a dizer. Ao fim de 24 anos...

Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim!

segunda-feira, setembro 11, 2006

Vértice

De noite.
Na solidão da falésia.
O vento corta-me às fatias.
Sou lusco-fusco
(A bailarina de corda.
Sem mão esquerda e de lábios azuis)
Semente nocturna dos dias.
O mar contra a pedra.
O mar morto contra pedra viva.
Luto salgado. Sagrado.
Dos quartos vazios à luz trémula das velas
E das mãos que tombam de outras.
O silvo seco e louco de tudo
A embalsamar-me os olhos
Num instante de terror.
Até a baioneta.
(Frio de metal cinzelado.
Azul. Azul. Azul.
A invadir dos lábios o corpo todo)

Zim!

E o sangue!
Vivo. Vermelho. Voraz. Veloz.
Se verter no véu da alvorada.


[Ontem. Adoro]