sexta-feira, março 16, 2007

Manuel e Alzira

Dantes a estrada de terra batida era tudo. A poeira que se elevava do chão ferido pelas rodas do carro sabia bem como beijos de mãe. Do lado direito. Ao fundo da estrada estreita, onde mal cabia o nosso carro, dois pedaços de muro dividiam o mundo. Ajudados pelo portão de ferro vermelho. De onde se soltavam lascas de tinta que deixavam à mostra a ferrugem castanha do tempo.

O portão que subia em pequeno. Com os pés fincados no bordado de ferro. Que subia para me sentir balouçar nas dobradiças gastas pelos anos. O portão onde me feri na coxa esquerda. Com a ponta de uma seta de ferro que se erguia no ar.

Para lá do muro e do portão havia o vosso mundo. A relva marcada pelo passar dos pneus. O canteiro de flores do lado esquerdo, antes das escadinhas de pedra. Onde vocês nos esperavam sempre como se a salvação estivesse no nosso abraço e tudo o que era mau se escondesse a correr, no fundo do baixo que ficava a seguir à casa. A seguir à relva.
Mas antes da horta. Antes dos morangueiros. Antes das pereiras que vertiam os seus frutos no chão como se chorassem muito. E eu não as quisesse perceber.
Do lado direito outras árvores. Outras plantações. E ao fundo mais árvores altas. Com bicicletas e câmaras de ar antigas. Mais antigas do que eu. Presas nos ramos.

O mundo todo que havia nesse quintal. Quando era pequeno e olhava para as árvores do fundo era como se olhasse para todo o Universo. Gostava muito. Gostava tanto. De pensar que as árvores do fundo ficavam numa distância infinita. Que o caminho até lá era mágico e que tinha segredos por descobrir.

Acho que foi por isso que nunca gostei de passear em toda a extensão da horta. De uma vez. Para não ter a certeza triste e dolorosa que aquele espaço era finito. Pequeno. Talvez. Até. Sem magia.

(...)

Agora tudo mudou. Passei lá neste Verão e deu-me nos olhos uma tempestade.
Não restava nada do que um dia existiu. De um certo modo estava tudo igual. Muro. Portão. Relva. Canteiro. Degraus. Porta de madeira da casa. Quintal. Árvores do fundo. Mas estava tudo triste. Estava tudo morto. Tudo morto e transformado numa aberração do paraíso que fora.

Desde que vocês se foram. E não há ninguém à nossa espera nos degraus das escadas. Para nos abraçar e dizer quantas saudades tinham tido nossas. Tudo está morto. E agora... Eu não posso... Abraçar-vos e dizer quantas saudades tenho vossas.




[06-12-2005]