terça-feira, abril 08, 2008

A praça...

Há um rumor no silêncio dos dias que me faz pensar em ti. Recordar-te entre os atropelos do metro, em plena correria da vida quotidiana. Há qualquer coisa de ti, ainda, aqui, agora.

O perfume de rosa que emanava de todos os poros do teu corpo, o teu cabelo brilhando ao Sol, a agilidade felina da tua pele, os teus passos decididos, firmes, temerários, que foram feitos para governar o mundo, neste ou noutro tempo qualquer. Fecho os olhos e lá estás tu, a percorrer a praça pela manhã, o vestido ondulando ao vento, a terra batida a esvoaçar em redor, o ritmo mecânico do bater dos saltos no empedrado. Eu estava ao fundo, no banco de jardim que ficava debaixo do plátano centenário, donde se via todo o largo principal. Ao fundo, dominante, a velha igreja, com o catavento corroído mais pelo passar dos dias do que pela chuva, que nesses anos era pouca, em cuja escadaria mendigos proliferavam.

Dos lados, as antigas casas senhoriais, transformadas com o decorrer do tempo e o declínio das fortunas individuais, em mercearias, tabernas e retrosarias. Havia ainda o edifício dos correios, do lado esquerdo da igreja e, no meio da praça, a estátua de um combatente sem nome, sem pátria, sem medo e até sem cabeça, desde há décadas.

Era domingo de manhã, à hora de saída da missa, não havia os vendedores ambulantes de sempre, não havia o apregoar constante, o buliço infernal dos dias de semana. O sino dava as dez badaladas e então começava o parto prolongado das portas da catedral, os mais apressados primeiro, estugando o passo até desaparecerem na esquina mais próxima, ainda de chapéu na mão e já desabotoando o casaco, demasiado quente para qualquer dia do ano. Vinha depois o pelotão de gente, heterogéneo e informe, que descia as escadinhas da igreja e se espalhava pela praça como um enxame de abelhas ao qual se roubou a colmeia. Por fim, começava o longo desfile dos mais demorados, dos que se delongavam mais em frente deste ou daquele altar, das beatas que vinham de se confessar, dos que tinham adormecido a meio da função.

Tu vinhas com o grosso da multidão, mas lembro-te hoje como se viesses sozinha, destapando o véu aos primeiros degraus, dando esmola ao mendigo que te parecesse menos merecedor, brilhando na multidão sem rosto e sem nome como uma pérola num barril de petróleo.
Seguia então os teus passos, a graça do teu corpo a serpentear por entre as linhas austeras e antiquadas da praça, a serenidade insolente do teu porte, o olhar altivo e imperial.
E os teus passos silenciavam todos os ruídos em teu redor. Cessava o rumor incoerente das pessoas da praça, o silvo do vento por entre os ramos da árvore, o trotar dos cavalos, ao longe, numa rua da periferia da cidade.

Vejo-te agora tão nítida como então. Vislumbro o teu vestido a ondular no meio da multidão que sai do metropolitano, capto um relance do teu rosto da janela suja do comboio, volto-me para trás nas ruas aturdidas da cidade depois de ouvir os teus passos seguros, confiantes, vivos.

A vertigem do tempo é uma espiral que me atrai para ti, para a alegria imemorial de te ver bela e jovem e fresca, como nessas tardes de Primavera primordiais.



[2004... nada de especial]