sábado, maio 06, 2006

Sem [ Um conto para adormecer... ]

Acordei sem nada entre mim e os outros. Entre mim e o mundo. O céu azul. Ou branco. Ou uma mistura dos dois. Não me lembro poorque estava Sol. Nos meus olhos. Acordei sem sombra na cara. Com as pombas em redor de uma fonte. Como naúfragos num deserto.

Acordei cansado. Sem forças por dentro. Onde fazem mais falta. Talvez tenha sonhado. Se sonhei devo ter gostado. Gosto sempre de sonhar enquanto durmo. Os meus sonhos têm esperanças escondidas em todas as esquinas. Os meus sonhos acordado magoam. Fujo deles.

Acordei sem nada entre mim e o mundo. Sem nada entre mim e os outros. Ao abrir os olhos não apalpei almofada. Não senti cama. Não vi paredes. Nem desliguei o despertador.
Acordei e vi o mundo a girar à minha volta. Senti o banco de pedra. Apalpei a trouxa que fizera na noite anterior. Madrugada. Quando? Com roupas mais velhas do que as que trago no corpo. Ou menos quentes. Vi paredes. Paredes de casas antigas e montras sem rosto. Não desliguei o barulho dos carros porque não pude.

Não sei por onde começar. A loucura dos dias. Dos meses. Dos anos. Que me arrastou até aqui. Que me fez desaguar neste banco como Tâmega no Douro. Acho que. De um modo geral. Tudo aconteceu um dia ao sair do Metro. Perdi-me da multidão. Perdi-me da minha casa. Dos meus dias. E não consegui encontrar o caminho de volta. Perdi-me e fiquei preso nas ruelas de uma cidade que desconheço. Desconheço? Desconheço.

Eu fui alguém. Tive um nome. E as pessoas em meu redor diziam-no. Por vezes sorrindo. Eu fui alguém. E fiz parte da raça humana. O mundo rodava na mesma direcção todos os dias e as sombras não metiam medo como cães sem trela. Tive amigos. Ou pessoas que falavam comigo. Não sei. Não me lembro da diferença.

Agora não interessa. Esqueci o meu nome numas garrafas vazias. E por isso desapareci. E não culpo as pessoas que passam e não olham para mim. Porque não saberiam o que dizer com o olhar. Não quero esmolas. Sobrevivo. Nem pena. Porque a pena é triste e faz-me chorar pelos olhos que me olham. Afinal de contas sou eu que não olho as pessoas. Não me quero ver no reflexo da pupila. Deitado no vazio do mundo.

O que custa é o passar do tempo. Os dias sem fim. Os dias pesados como coisas grandes. E muito pesadas. Os dias que se arrastam como se a eternidade fosse uma hora marcada. Os dias em que quero desistir. E chorar. E dormir. E se possível fechar os olhos e os ouvidos. As horas que parem outras muito a custo. Num parto doloroso e sem descanso. Os passos das pessoas que passam nos passeios. Em meu redor. Por baixo. Por cima. Por dentro de mim. Como os ponteiros infernais de um relógio universal.

O Sol que não sobe no céu. E que depois não desce. O Sol que se cola aos dias como pastilha elástica por baixo das carteiras da escola. O Sol que me cega. E me deixa ver as sombras de tudo. Das casas. Das fontes. Das pessoas. Das pombas. Até de mim mesmo. Cá dentro. Nos becos da alma.

A noite chega como uma redenção. Cala-se tudo como por magia. O mundo adormece aos poucos e poucos. Sinto-me bem. Porque esqueço o sítio onde estou. E as estrelas são o tecto do quarto que nunca mandei pintar. Gosto da Lua como dum beijo de mãe. A aconchegar-me os lençois do coração e a fazer-me acreditar. Que não estou aqui. Sozinho. No escuro negro e sem luz da cidade. Onde em cada esquina pessoas têm medo de mim. E me metem medo. Por existirem.

Que não é verdade que eu esteja com fome. Que isto é só uma comichão na barriga e amanhã de manhã tomo o pequeno-almoço antes de ir para a escola.

Que não estou cheio de frio. A bater os dentes como portas de casas. Que se fecham com o seu calor lá dentro. O calor das pessoas que me fogem como gatos de cão.

Que este banco não é duro. É um colchão. Que não precisa de ser mole. Basta que não me fira as costas.

Que amanhã de manhã vou acordar protegido do mundo por betão e tijolo. E vidros. E portas. E um lençol talvez.

Que alguém se vai lembrar. Do nome que esqueci. Do caminho de casa que perdi. E me vai abraçar. Ensinando-me o caminho de volta. Deste bosque de sombras onde ando em círculos cada vez mais pequenos. Cada vez mais apertados. Cada vez mais sem esperança. Cada vez mais zonzo. Até cair. Sem nada entre mim e o mundo. No asfalto sem vida desta cidade deserta. Onde serei espezinhado. Sem ser visto. Ou lembrado. Até à morte.


[2005. Mais um texto ficcionado sobre um Sem]

Medo

O vento frio que nos percorre por dentro da pele quando. O medo. Aparece.



2005

Sem milagres

Para mim qualquer palavra é um milagre. É o problema de falar tão pouco. É o problema de pensar tão pouco.
Cada palavra aparece como uma inspiração divina. É por isso que escrevo com unhas e dentes, agarrado às palavras que me cruzam o cérebro, como comboios pendulares, de tempos a tempos. Quando não as consigo segurar, devido à velocidade com que vêm, atiro-me para a frente delas. E sou então atropelado por toneladas de aço feitas palavras desconexas, retorcidas, cinzeladas.

Procuro palavras novas. Palavras que todos conhecem. Menos eu. Palavras que nunca escrevi em lado nenhum porque não estão no saquinho das palavras que guardo comigo desde que me conheço.
Às vezes aproprio-me de palavras gastas como se fossem a Salvação. A Redenção. A Ressurreição.
Outras vezes as palavras perdem a magia e devolvo-as à escuridão negra do saco sem fundo.

Não tenho nada comigo. Ne letras. Nem palavras. Nem sonhos. Nem desilusões. Sou uma pessoa fechada. Que se deixa existir vezes demais. E se entrega nos braços atrofiantes do ócio mental.

Para mim. Qualquer palavra. É um milagre.


[Há cerca de um ano atrás. Nestes dias as palavras ainda custam mais a segurar do que nessa altura. Não passam comboios...]