quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Memórias

Não tenho paciência para gastar linhas atrás de linhas. Como rolos de papel higiénico. Não consigo seguir o fio. Lógico. Frio. Calculista. Do pensamento.

A minha mão foge. De mim. Como eu dos cães ao vir da escola. Lá nos dantes onde tudo era nevoeiro e céu limpo ao mesmo tempo. Escrevo como quem lavra a terra ao amanhecer. Como tu avô. Muito mais cedo que eu. Muito mais cedo que vós de olheiras falsas nos comboios pela manhã. Tão cedo como se a noite fosse um sonho mau que para ti não existia. Escrevo suando como quem apanha as batatas do campo grande. Em frente da tua casa. Ou como se procurasse os tortulhos no pinhal com os meus pais nos fins-de-semana diferentes de outro tempo. Nunca os apanhei. Procurava-os como quem acreditava que crescessem nas árvores. Ou nos bicos dos pássaros. Mas doía essa busca.

Como dói isto. Hoje. A dor sem cor. Que é uma libertação forçada. Um salto para o abismo. Quando tudo o resto parece cair.

As folhas do Outono espalhadas pelo chão do jardim. Castanhas como a cor dos teus olhos. Olhos como não há. Fora de ti. Só as folhas no chão. Que gostas de pisar porque estalam. Secas. Só elas têm a cor dos teus olhos. Os ramos das árvores como mãos seculares. Sem abraços. Sem apertos de mão. Aconchegam mais do que sorrisos gastos. Em todo o lado. A toda a hora.

O baloiço no parque. A areia solta. A areia presa. Os cavalinhos sem cor. Azuis. Vermelhos. Amarelos. Cor de alumínio ou ferro. Os cavalinhos que desapareceram quando o parque virou parque de estacionamento. E eu deixei de poder ir jogar futebol sozinho. Para lá. Enquanto tu andavas nos cavalinhos. Ou no escorrega. Ou no baloiço se eu estivesse a olhar para ti. De preferência a teu lado. Porque és pequenina e podes passar sem querer à frente de um baloiço com alguém dentro. Ou podes cair. Agora já ninguém cai. Nem pode empurrar os cavalinhos como eu empurrava para tu andares depressa. Mais depressa. Até eu e tu pensarmos que voavas.

Já não vou voltar a jogar lá. Mas jogo aqui. No ringue da minha memória guardo os restos dos locais que me fizeram crescer. Dia após dia. Com o amor e o carinho dos meus pais tudo foi fácil. Não me lembro de coisas más. Só da alegria extasiante dos fins de tarde desocupados. Que ocupava invariavelmente. Da melhor maneira. Da minha. A fazer tudo o que me apetecia.

Agora. Aqui. Hoje. Cansei-me desta caneta e deste papel. Já não me apetecem.




[ 2005. Avô. Princesa. Maninha ]

(Des)aprendizagem

A vida tem-me desensinado tantas coisas. Tenho perdido tanto do que aprendi com o passar do tempo. Sinto-me senil nesta hora da madrugada, sem ninguém a meu lado para ouvir aquilo que esqueço, a cada momento.

[2005]

Além do mar

Além do mar sem fim, onde monstros loucos de assustar o medo. Onde trevas devoradoras e sombras de infinito.
Além desse mar negro e sem esperança. Como as portas escancaradas do Inferno.

Além disso fomos nós. Fomos nós com a força impensável de uma nação sem tamanho. Fomos nós com a alma pura e o coração preparado.
Fomos nós e acendemos uma luz nos breus da imaginação.

[2005]

Não crescer

Um dia chorei muito. De noite na cama. Porque não queria crescer. Ser adulto. Tenho vivido agarrado a essa crença como um naúfrago a um resto de madeira. Adio conscientemente o meu futuro. Sempre que ele me toca à campainha assobio para o lado. E corto pela raíz qualquer contrasenso ao meu pensamento pueril.

Sou feliz assim. Cresci por fora. Ossos. Músculos. Tendões. Ligamentos. Por dentro estoi eu. Igual a mim. Desde sempre talvez. Posso até dizer que irredutível como uma pequena aldeia gaulesa na França.

Não vou deixar. Que o tempo pegue em mim e me molde nas mãos. O meu corpo não tem valor. Mas eu. Por dentro. Não serei vencido.


[2005]