quinta-feira, novembro 24, 2005

Barba

Quando deixo crescer a barba não é a barba que deixo crescer, mas dias. Quando me olho ao espelho e pêlos negros a pintarem-me a cara de fuligem, vejo os dias que passaram. Os dias que passei. Longe de mim.
Trago na cara os dias que foram e nas mãos guardo os dias que serão. Se passo pelos dias como quem está sempre atrasado.


Coelho branco da Alice no País das Maravilhas.


Se passo pelos dias a correr como quem está sempre atrasado. Quero que os dias me marquem de qualquer forma. E só no rosto por barbear me asseguro de existir.


24/11/2005 - 04.55

terça-feira, novembro 22, 2005

Infertilidade

Infertilidade


Há pessoas estéreis, como vales sem sombra.
Rios que correm loucos, sem mar para desaguar.
Há pessoas vazias. Ocas como ramos partidos.
Dons Quixotes sem elmo. Sem cavalo. Sem Dulcineia.
Sobra um vazio de morte na viragem dos dias.
Um silêncio de mil crianças enche a casa. Vazia.
Choram passos perdidos na cela das noites.
Sonhos mutilados. Abortos espontâneos de nós.
Há pessoas estéreis, como vales sem sombra.
Órfãs de filhos, que jamais nascerão.



[Abril ou Maio de 2005]

segunda-feira, novembro 21, 2005

Longe...

Se eu pudesse. Com as mãos que tenho. Com os olhos. Com o nariz. Com a boca. Com os ouvidos. Que tenho. Ser diferente de mim. O mundo multiplicava-se em dois.

E. Então. Em nenhum deles eu me sentiria só.



Florença, 19/09/2005

Homeostasia

A qualquer hora. Em qualquer lugar. Há sempre alguém. Em todo este mundo vasto e sem nome. Que é totalmente feliz.
E do outro lado do coração. Não do outro lado do mundo. Do outro lado do coração. Há alguém que é totalmente infeliz.

O mundo é um enorme ser vivo. Homeostático. E é por isso que. Alguém. Do outro lado do mundo. Há-de dizer que tudo isto é uma mentira.



Roma, 21/09/2005

domingo, novembro 20, 2005

Os meus olhos

Os meus olhos diferentes de olhos. Os meus olhos que não olham para as coisas como se olha para as coisas. Que olham para as coisas como se as procurassem. As atravessassem. As esquecessem. No mesmo instante.

Os meus olhos que prendo no vazio de qualquer local. Que vagueiam por multidões de olhares como por um deserto sem oásis. E se demoram em silêncios que não consigo explicar. E me embaraçam na frieza das ruas de Inverno.

Os meus olhos quase negros como noite sem luar. Quase profundos como a dor da ausência. Os meus olhos diferentes de olhos. A desenrolarem nas distâncias horizontes distintos. A projectarem na tridimensionalidade do espaço ecos vagos do que trago. Tatuado. Por dentro.

Os meus olhos tantas vezes vazios. Vazios como se ocos. Vazios como se virados para dentro de mim. Vazios como se dentro de mim também um vazio oco e sem nome. Vazios como vasos vazios de flores.

Os meus olhos muito abertos. Arregalados como se o mundo se reinventasse a cada instante. Como quem nunca aprendeu a habituar-se às coisas às quais é necessário habituar-se. Os meus olhos sem passado. Sempre espantados no presente primordial.

...

Os meus olhos diferentes de olhos. Os meus olhos que não olham para as coisas como se olha para as coisas. Que olham para as coisas com o olhar que as coisas teriam se olhassem para nós...




20/11/2005 06:12