quinta-feira, julho 27, 2006

Impressões

O fim do dia a cair sobre a terra como um véu das mil e uma noites. Com uma promessa de ilhas paradisíacas suspensas num pôr-do-Sol perfeito.
O fim do dia a esbater suavemente cores, cheiros, sons e a acender levemente, no seu lugar, uma sinfonia nocturna.
O ritmo melancólico. Doce. Que se vai lentificando sem se tornar lento. O ritmo dos lavradores a retornarem do campo com as sacholas no ombro e a boina levantada. O cabelo agora descoberto. Grisalho como a vida. A mão que desliza sobre ele como arado sobre terra por semear. Mais um passo amortecido pela estrada de terra batida e na face uma gota de suor vai descansar de encontro ao sobrolho. A boina a regressar ao topo da cabeça. A camisa desabotoada. Dois botões e o peito queimado por tantos sóis. A mão a buscar o bolso. A buscar dentro do bolso. O lenço azul com a inicial cosida. Companheiro quando o calor aperta e faz chorar a pele em demasia.

Mais um passo. O virar da esquina. E no canto do olhar acende-se um brilho moreno e vivo.

Lá ao fundo. De pé no topo das escadas de pedra, uma frágil figura espera. As mãos enrugadas repousando sobre o avental azul. O cabelo apanhado num carrapito no cimo da cabeça. Nos pés socas de madeira sujas de terra. E no rosto a alegria serena. E sábia. Do amor.


[26/07/2006]

segunda-feira, julho 24, 2006

Papão

A cama hoje não vai ser repouso. Nem o sono vai chegar. Hoje vem uma noite branca. Como outras no passado nevado. O amanhã é um bicho muito mau e muito feio que vem para me fazer mal. E os braços da noite, hoje, não me podem proteger nem esconder das borboletas más na barriga.


[2006]

A verdade (e um limpa-neves)

A verdade é só esta. Nua e crua como só as verdades podem ser. Quero atirar-te para trás das costas. Quero esquecer-te. Perder-te (Não ir-te perdendo aos poucos. Perder-te toda de uma vez só com a intensidade com que sempre cri em ti).

A verdade é só esta. Tivemos muitos dias. Muitos meses. Muitos anos. Cheios de segundos e oportunidades que não o foram. Agora chega. Agora a nossa viagem chegou ao fim. Os nossos destinos separam-se aqui. Eu vou por aqui. Tu vais por onde quiseres. Mas não comigo. Não te trarei mais dentro de mim nas horas vazias, quando a noite cresce dentro do peito até sugar toda a sanidade do ar. Agora chega. Estarei só quando estiver só (Não estarei acompanhado como quando estava só com a tua presença metafísica). Estarei só e feliz. Sem o peso todo do passado que nem passado foi, mas um devaneio de criança. Sim, um devaneio de criança.

A verdade é só esta. Espero um dia perder também as recordações que são caminhos de terra batida que levam a tua casa. As poucas recordações que são veredas à beira-rio num pôr-do-Sol eterno onde corro o risco de te reencontrar sem querer. Espero apagar todas as minhas pegadas da neve. Para nunca mais as poder seguir no sentido contrário. No sentido das tuas. No sentido de ti.

A verdade é só esta.


[13/14-06-2006]

Anjos

Às vezes. Na vida. Há pessoas que nos tocam como anjos. Com os seus dedos de veludo e os seus corações cheios de paz. Pessoas que nos enlaçam com os fios invisíveis da alma e nos prendem com nós que nenhuma espada pode desfazer.

Após o que. Muitas vezes. Como anjos regressando aos céus. Se afastam de nós. Desaparecem na imensidão (de oceano) da saudade.


[23-07-2006]