segunda-feira, junho 05, 2006

Ampulheta

Só hoje percebi que vais ser passado. Foi agora. Desde então só peguei na caneta e no bloco. Ambos novinhos a estrear. Percebes a ironia? Acabei de perceber que tu. Como quase tudo o resto. Vais acabar por ser passado. E digo-o de uma maneira cheia de futuro.

Devia tê-lo percebido há muito tempo atrás. Só os meus olhos, abertos de mais, me impediram de perceber os pormenores. E também os pormaiores. Porque não?

De certa forma chegaste até este presente. Até este presente revelador e mutacional. Embrulhada em roupagens de passado. Foi quase como se eu e tu fôssemos soldados. Como se tu tivesses caído moribunda há quilómetros atrás. Como se eu tivesse insistido. Como se não quisesse perceber o vazio a crescer no espaço branco do teu olhar. Na tua pupila. Como se não quisesse ver o sangue a verter-se do teu abdómen fendido (Como se não quisesse ver-te verter. Ver-te vertida). Como se, por tudo isso, te tivesse erguido com carinho no ar antes de te colocar o peso (Morto. O peso morto) sobre mim. Sobre os meus ombros cegos e surdos. Como se, depois disto ter feito, te tivesse carregado quilómetros e quilómetros (que são metros e metros somados a metros e metros na lonjura dos dias). Por desertos e montanhas. Por vales e mares. Convencido de que estavas. De que eras presente e serias futuro. Até hoje. Neste sofá perdido na multidão domingueira de um centro comercial.

Só hoje percebi que vais ser passado. E perder-te vai ser natural e desinteressante. Como um braço a pender dos ombros. Dois braços a escorregarem. E logo depois o silêncio do corpo todo na terra batida. Já sem dentros para verter.




[04-06-06. 20 horas. CascaisShopping. Tive caneta, papel e força. Estou muito feliz. Mesmo muito feliz com este texto. E isso é raríssimo.]

domingo, junho 04, 2006

Caleidoscópios

Houve tempos em que corria em mim um sangue diferente do de hoje. Tempos em que os meus olhos eram caleidoscópios e me mostravam o mundo como ele deve ser visto.

Nessas alturas havia dentro de mim o grito madrugador da poesia. Uma sensação em nada diferente de um delírio de febre. Como uma onda. Como uma inquietação imprevista e avassaladora. Rebentava em mim o desejo louco e inestancável (como um rio a derrubar uma barragem de betão). O desejo louco e inestancável de escrever. De escrever pedaços de corpo. De mergulhar de cabeça. E corpo todo. Nas águas purificantes da alma. E dela resgatar. Como se resgata alguém que está prestes a afogar-se. E dela resgatar as palavras ditadas pela mão cega da musa.

Tudo isso foi num tempo indeterminado. Que pode ter sido há anos ou apenas ontem. A partir de certa altura os dias são muito semelhantes a areias movediças. Que nos prendem pelas pernas e nos impedem de seguir viagem. De abrir horizontes. De ver o mundo.

O mundo que. Sem caleidoscópios. É triste como uma casa vazia.