segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Branco

Perguntaram-me, com os olhos muito abertos, se me queixava de alguma coisa. Com os olhos muito abertos, como se as escleróticas assim expostas me explicassem o sentido da pergunta. O que implica que eu percebesse o que são queixas e o que não são queixas. Não sei se consigo. Por isso silêncio. E os meus olhos sem escleróticas a mais. Com a expressão neutra de quem olha através de tudo na procura de uma imagem de felicidade. Como procurando raspar a tinta das coisas, dos dias, das pessoas. Até vislumbrar a armação nua das horas.

As queixas, em si mesmas, são inúteis. Subjectivas como dias agradáveis ou desagradáveis. Ainda que eu me despedaçasse por dentro, que toda a minha alma se corrompesse de caruncho, comida pela cólera do vazio. Ainda que eu estivesse a um passo do abismo. Melhor, ainda que o abismo todo estivesse dentro de mim e não houvesse já qualquer passo a dar. Mesmo nessa situação eu poderia abster-me de me queixar. De levantar a mão na fila da vida (talvez arregalando os olhos até a pupila parecer um berlinde numa nuvem branca) e gritar bem alto: Eu quero fazer uma queixa! Porque sofrer é algo. Considerar um motivo válido para erguer a voz e soprar esta dor nos ouvidos transeuntes é uma coisa totalmente diferente.

Não. Não me queixo de nada. A noite correu como qualquer outra e não preciso de coisa alguma. Só de silêncio e de uma janela aberta que dê para um pomar em flor. Sem isso tudo são queixas e é precisamente por isso que nada são queixas.

O que mais me custa é o branco. Das pessoas e dos dias que se arrastam em direcção a um outro sonho. O branco estéril das folhas de papel, das seringas, das batas, das luvas, das toalhas, dos lençóis. O branco todo nas escleróticas abertas com muita força até eu compreender que é impossível seguir todas as manhãs a negação absoluta das queixas.

Espantosa, no entanto, é a evidência de que as horas passam. Que o sangue espesso dos dias, das tardes, das noites e das madrugadas. Que todo este sangue viscoso flui. No meu olhar há sempre o mesmo instante, completo e eterno, imune a horas do dia ou da noite. Imune a frio ou calor, suspenso numa lucidez cortante, que nenhuma escuridão ousa vencer. E, apesar de tudo, o mundo gira uma vez por dia. E há sempre pássaros ao longe, nos galhos da árvore grande que adivinho à distância.

Não sei como vim aqui parar, ou como o meu corpo (hoje nau encalhada, com rombos no casco e abandonada na praia do tempo) se derreteu nestes ossos e nestas peles sem futuro. Mas mais triste ainda, sem passado. Sem passado porque nas memórias cheias de cores (onde o branco era só das nuvens e das roupas acabadas de lavar no tanque, penduradas na corda debaixo do coberto) e de prados com flores. Nestas memórias mora um corpo diferente, são e forte como um touro à solta pelos campos. E hoje... Que a arena implacável ferve. Fere. Em golpes de bandarilhas desferidos em todos os ossos (Em todos os tendões. Em todas as articulações. Em todos os músculos. Em todos os dentros). Hoje, antes do meu olhar se tornar turvo. Antes que se reflicta nele a luz baça da última hora e o branco me apague o brilho das pupilas, as pupilas, o corpo todo. Hoje, antes de tudo isso, o meu corpo mutilado e turturado é uma mentira que me recuso a compreender.

Por isso, amanhã de manhã, quando me perguntarem com os olhos muito abertos, se me queixo de alguma coisa. Depois dos meus olhos neutros e do meu silêncio. Vou dizer que não, fechar os olhos e adormecer encostado ao tronco rugoso da árvore grande do pomar.



[19/10/2006... Escrito numa página de Diário Clínico, no comboio para casa... Deve ser tão triste ser um dos doentes nas camas dos hospitais, pelas manhãs...]

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