sábado, fevereiro 07, 2009

Areal

O dedo do teu pé a rasgar na mansidão do areal sulcos vivos. A escrever vales no meio de montanhas. A formar cordilheiras de areia tornadas letras. O dedo do teu pé. Que é o sacho de um lavrador qualquer num final de tarde. Que é o sacho do meu avô.

Ou a sachola pequena com que eu o imitava. E que o fazia sorrir como se o tempo parasse e existíssemos só nós na horta ao entardecer.

O dedo do teu pé que. Dizia. É um sacho a abrir na terra carreiros firmes. É um sacho a profetizar um bom ano e uma boa colheita. É um sacho a jurar jantares por vir e o fumo da chaminé em noites de Inverno.



O dedo do teu pé a rasgar na mansidão do areal sulcos vivos. Sacho a fertilizar a terra. A vida. De sementes de amor e dias felizes. Onde. Num deles. Eu de sachola na mão a escrever AMO-TE no fundo da horta.




[17/11/2005]

Onde estás?

Onde estás? - Gritei. Mas a noite engoliu as minhas palavras.






[Há tempos...]

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Sentinelas

Acabou o tempo e semeámos rosas da palma das mãos. Por cima de nós os restos de um dia que se punha. Ao longe. No horizonte de montes sobrepostos.

[Os montes mágicos. Soprados por uma ténue aragem de fim de tarde de Verão. Com árvores dispersas e espaço para sonhar entre elas. Os montes que eram promessas adiadas. Que apeteciam tanto como uma guloseima guardada no bolso da camisa. E o prazer de não a comer. De a ter guardada. A fazer aumentar. Segundo a segundo. Minuto a minuto. Hora a hora. A deliciosa expectativa do momento por vir. Do desembrulhar crepitante do papel de embrulho. Mais intenso. Mais nítido. Do sabor todo na ponta da língua. Na língua toda. Não só o corpo, mas a alma também, a saborearem mais que a guloseima. A saborearem a vida. Assim apeteciam os montes.]

Depois das mãos vazias. Do dever cumprido. O ar tornou-se mais pesado. Com cheiro a noite sem luar. Na mesma altura começou a lenta melodia dos sinos da igreja. Grave. Soturna. Compassada. Como pancadas ameaçadoras na soleira da alma. Como medos vertendo-se para dentro das gentes.

[ O ruído tenebroso dos sinos. A lembrar-nos da nossa mortalidade. A maneira como ecoa no negro. No silêncio da noite. Como cada badalada carrega todas as coisas sérias. E reais. E inevitáveis. Da vida. E como. Cada intervalo de silêncio entre elas. Dura eras. Eras cheias de tudo o que não cabe fora delas. Memórias dos que se foram. Sorrisos da pessoa amada. O calor do Sol a bater no rosto numa qualquer tarde de Primavera. O cantar dos pássaros na distância. O suor a escorrer da testa. A cair na terra acabada de sachar. O som do vento entre as folhas das árvores. O recreio da escola. A gritaria dos colegas. O ruído dos grilos. E depois outra badalada imperturbável. Convicta. A impregnar o ar de arrepios na espinha. E isto repetido. Uma vez. Duas vezes. Muitas vezes. Até tudo cessar em silêncio.]

Então fechámos os olhos. De-mo-nos as mãos. Sorrimos ao de leve. E. Calmamente. Caminhámos de encontro a um novo amanhecer.




[2008...]

As palavras foram

As palavras foram sortes jogadas na noite
Sementes de ódio e amor,
Sem as quais nada faria sentido.

Todas estavam prenhas de nós,
Dos nossos medos e dos nossos sonhos.
Foram palavras de sangue,
Vociferadas contra o vento.
Foram faróis que feriram e fenderam o vazio.
Foram facas de gume afiado
Apertadas contra as goelas do tempo.

Foram sóis.
Foram fogueiras acesas no breu,
Onde procurámos aquecer-nos da morte.

As palavras foram bombas explodindo da boca
E estilhaços de granadas no coração.
Mas também flores.
E delírios de pássaros doutros tempos.
Doutras eras.

As palavras foram silvas e urtigas,
Rasgando a pele de tudo.
Foram saraiva contra o rosto,
Granizo nos dentes. Trovoes nos tímpanos.

As palavras.
Foram.
E não mais as soubemos encontrar.

[2008]